Cultura afro-brasileira: AYAN e sua poética intertextual

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 Inaycira Falcão dos Santos

O argumento que pretendo desenvolver neste estudo, é que, para se pensar na tradição africano-brasileira, como forma verdadeiramente expressiva na criação artística, torna-se necessário levar em consideração, os valores da cultura em questão. Considerando-a como agente de integração que pode estabelecer uma coerência, uma organicidade entre a tradição de um povo, e o conhecimento da arte teorizado, possibilitando o enriquecimento da nossa cultura.

 Tambores Bata do terreiro de Pai Adão de Recife ressurgem no Congresso da Tradição dos Orixá na Bahia. Foto: Acervo M. A. Luz

Tambores Bata do terreiro de Pai Adão de Recife ressurgem no Congresso da Tradição dos Orixá na Bahia.
Foto: Acervo M. A. Luz

Trata-se da busca na criação artística, e consequentemente a origem de uma proposta pluricultural na dança-arte-educação brasileira, através da história do indivíduo e da mitologia. Examinando também nesta experiência, a possibilidade de uma base de expressão, dentro de uma perspectiva histórica, religiosa, artística e intuitiva.

Foi fundamental compreender o processo, esta busca de espaço, a fim de torná-lo mais significativo aos artistas e educadores brasileiros, os quais se comunicam com a sociedade, no decurso de uma identidade cultural, ou aqueles que buscam uma educação pluricultural.

Ojé e Alabe do Ilê Axipa ensinam noções de ritmos percussivos na experiência Atabaque Entre as Folhas. Foto: Acervo M. A. Luz
Ojé e Alabe do Ilê Axipa ensinam noções de ritmos percussivos na experiência Atabaque Entre as Folhas.
Foto: Acervo M. A. Luz

“Transformar a educação atual, defendendo uma educação para todos, que respeite a diversidade, as minorias étnicas, a pluralidade de doutrinas, os direitos humanos, eliminando estereótipos, ampliando o horizonte de conhecimentos e de visões de mundo.” (GADOTTI, 1993, p.1)

Pondero, entre outros atributos, a performance como vivência pessoal, aquela que tem me proporcionado a consciência corporal do meu ser, e a histórica do que sou. Foi sempre na tradição africano-brasileira que busquei inspiração, informação, tanto no aspecto profissional quanto na filosofia de vida. Esta expressão estabeleceu a origem da hipótese de criação, de uma expressão artística no cenário da dança-educação brasileira.

Acompanhe outras pesquisas de Marco Aurélio Luz aqui, na Associação Crianças Raízes do Abaeté

Percebo a importância da contribuição, e ao mesmo tempo, o desafio e complexidade de fazer-me compreendida, como uma artista-educadora, nos parâmetros do universo acadêmico. O aspecto fundamental seria, ter todo o processo consciente e informado. Foi necessário para elaborar e divulgar o trabalho, conhecer, investigar a realidade do universo ao qual tinha experienciado. Nesta aventura criativa, procurei respeitar os espaços, ou seja, refletindo sobre a função do dançar nos rituais dos terreiros de orixás, e sobre o que seja dançar, nas composições coreográficas teatrais.

Discernindo a vivência intuitivo-criativa da vivência religiosa neste universo. Embora nos dois contextos as suas compreensões sejam realizadas pelo seu próprio conteúdo, na arte, a criação e na religião a razão do mito. Todavia, na criação, o artista une-se à ciência através da sua capacidade intelectual, abstrai da forma real um novo conceito estético-simbólico, dominando seu instrumento através da técnica, experiências acumuladas, emoção, sensibilidade e profunda consciência do seu ser.

Enquanto que no contexto religioso, os mitos transmitem os valores, os princípios, as crenças, os ritos reforçam, moldam a vida da comunidade, onde a função da arte é de presentificar a força da natureza ou a de um ancestral. O mito é compreendido, na atividade ritual na tradição Yorubá, para reconstruir a vida no terreiro, arrebanhando um sistema de valores míticos e que influenciam os pensamentos, a natureza e a forma da cultura africano-brasileira.

O vínculo com o tema escolhido, um dos mitos de origem do tambor bàtá, poderia parafrasear Joseph Campbell, fui capturada por este, e então o que ele pode fazer por mim de fato! (CAMPBELL, 1992, p. 3)

PASSOS DA CRIAÇÃO POÉTICA

“… O artista se vê, naturalmente a sem quaisquer dúvidas como algo mais que um narrador ou intérprete: acima de tudo, ele é um indivíduo que decidiu formular para os outros, com absoluta sinceridade, sua verdade sobre o mundo…” (TARKOVSKI, 1990, p. 119)

Embora, que no sentido de tornar claro o discurso, estou expondo o processo como forma direta, mas é impossível afirmar os momentos específicos nos quais muitas idéias iam surgindo enriquecendo a experiência e os momentos que outras eram removidas por falta de consistência do argumento corporal e intelectual. Ou seja, houve, toda uma “ginga” um “negaceio”, “vai-mas-não-vai”. Um jogo de cintura, para dar origem à “esperteza” do trabalho.

Primeiro Passo: Saturação

Para se pensar na criação cênica dessa matéria cultural, procurei assimilar de forma teórica e prática, o modo que os fenômenos se configuravam, ou seja, as relações dentro do conteúdo significativo do universo bàtá. Procurando trabalhar o sentido prático da vivência como protagonista da ação.

O bàtá é dança dramática religiosa, pertencente a um dos numerosos e mais antigos grupos étnicos do sudoeste da Nigéria, no continente Africano. Os Yorubás possuem movimentos vigorosos, espasmódicos, percussivos, vibratórios produzindo sensações de tensão e suspense, representa no seu aspecto mítico o relâmpago, o trovão, natureza simbólica do orixá Xangô.

Na cidade de Oyó, Nigéria; é onde se encntra seu grande templo, mas ele é cultuado em todo o estado Yorubá, no Brasil, Cuba e em outros países das Américas.

A dança bàtá, é a representação corporal do ritmo produzido pela orquestra composta dos tambores bàtá que a nomeia.

Folabo Ajayí comenta sobre o bàtá na Nigéria.

“Bàtá é rápido, dança energética raramente interpretada por mulheres. É caracterizada por movimentos bem marcados, definidos, rápidos, torções e de intrincados passos… A forma dessa dança está relacionada à dança de possessão que acontece durante o ritual de Xangô e do ritual Egungun. É essencialmente uma forma de dança do norte da região Yorubá. As revisões do alarinjó, grupo teatral, geralmente dançam o bàtá como forma de representação através de temas satíricos.” (AJAYI, 1989, p.2)

Tiras de pano abala que compõem as vestes sagradas dos Egungun Foto: disponível na internet
Tiras de pano abala que compõem as vestes sagradas dos Egungun
Foto: disponível na internet

A dança é revelada precisamente através da expressão do ritmo produzido pelos tambores bàtá, no contexto nigeriano, e pelos atabaques no contexto brasileiro.

Segundo Passo: Incubação

“O subconsciente é o depósito de tudo que você aprendeu e experimentou na vida… O relaxamento é a chave do funcionamento do subconsciente.” (PETERSON, 1991, p.22)

Nesta perspectiva, a idéia principal surgiu no transformar o conto mítico em poema. O poder da palavra na constituição do sistema nagô mostra que:

“A palavra proferida tem um poder de ação. A transmissão simbólica, a mensagem, se realiza conjuntamente com gestos, com movimentos corporais, a palavra é vivida, pronunciada, está carregada com modulações, com emoção, com a história pessoal, o poder e a experiência de quem profere.” (SANTOS, 1976, p.12)

Estas palavras na cultura Yorubá, e por extensão, na afro-brasileira estão nos mitos, nos contos, nos “Orikís” (poemas originados do sistema divinatório oracular do Ifá, que por sua vez se combinam em sub-conjuntos dos Odu). Nos festivais dos orixás; os mitos são revividos através da experiência religiosa. O orixá homenageado, é evocado, e com sua presença ele vive no presente o tempo primordial, na época em que o evento teve lugar pela primeira vez. Mircea Eliade argumenta que se pode falar: “… no tempo do mito, e o tempo prodigioso “sagrado”, em que algo novo, de forte e de significativo se manifestou plenamente, e reviver esse tempo, reintegrá-lo … é reaprender sua lição criadora.” (ELÍADE, 1972, p.22)

Terceiro Passo: Iluminação

Surgiu assim a personagem Ayán, princípio de vida do tambor bàtá, que trouxe de forma intrínseca os elementos corporais, rítmicos, vocais e visuais.

Ayán

Princípio vibrante

Divaga

Iyó-orun, ewó-orun.

Nascente, poente

Vida e morte,

Meditação intermitente

Crente

Odu traçado

Destino amarrado

Entranhas emaranhadas

Degusta afazeres, lazeres

Verte amores, desamores

Atenta

Orixirixi

Expelindo desejos latentes

Emerge a dinâmica

Exú

Interage, intercede

Ayán

Expande pele espessa

Repercute, curtida

Nutrida batida

Ayán

Espasmódica

Impetuosa, intensa

Breve e seca

Ayán

Transcende, transfigurada

No fundamento

simbólico

Do fogo.

Quarto Passo: Verificação

“É perfeitamente lógico que a verificação venha no final do processo criativo, pois aplicá-la antes causaria uma interrupção no fluxo de idéias.” (PETERSON, 1991, p.26)

Era imperativo para a realização deste trabalho, a união da teoria e da prática. Que este refletisse aspecto fundamental da pesquisa, na performance artística como um meio de comunicação-expressão.

Obtidas as informações do vocabulário pesquisado, da identificação daqueles movimentos e gestos pertinentes, ou seja, aqueles que recorriam com maior freqüência nas danças produzidas pelo ritmo bàtá. A organização sistemática desses dados, visava a possibilidade da reflexão permanente. Vai, portanto, resultar na elaboração de uma linguagem específica, dentro de um conteúdo ainda não figurado concretamente pelo corpo, encontrando-se oculto, esperando justamente a realização.

Assim, procurei construir com base concreta no ritmo, nas suas implicações no corpo, no espaço, na qualidade dos movimentos, nos gestos, nas palavras. Fazendo com que a influência desses, ocorressem nos planos objetivo e subjetivo.

Durante os exercícios de laboratório, o conhecimento adquirido tornava-se verdadeiro, incorporado a minha pessoa, a percepção se transfigurava. Fui adquirindo consciência, e aos poucos, ia formando um vocabulário com movimentos que se repetiam com freqüência nas improvisações. Estes movimentos, então, vão ser experienciados com variações estruturais diferentes, na elaboração da configuração cênica.

A linguagem cenográfica, espaço, tempo, música, ritmo, figurino, interagindo dialeticamente. Na originalidade, da apreensão de síntese da forma, decodificando a experiência vivenciada incorporada, em uma experiência artística, num processo de justaposição, deixando sempre um espaço, para o voluntário.

Portanto, a realidade temática estava no exterior, mas a sua realização transformava no meu subjetivo, no inconsciente, e voltava à superfície concretizando o espaço interior.

“A linguagem narrativa segmenta um evento em partes e vai roteirizando no tempo a compleição do todo. Desse modo, temos ações seguidas de outras, cujas ligações obedecem à ordem proposta pelo tempo.” (PLAZA, 1987, p.137) O argumento do texto, expressão estética, fundamentou-se numa narrativa sucessiva, no qual as ações entre os versos decorrem no tempo, coordenados de forma direta, cada acontecimento resulta do precedente.

CONCLUSÃO

O referencial prático-teórico-metodológico, traduziu uma poética intertextual com uma idéia de significação de movimentos corporais, de imagens, de ritmos, de palavras e de elementos cênicos. Tendo como referência pragmática, a releitura icônica significativa do tambor bàtá, através do método da tradução intertextual, com a variação semântica de transcrição, com o investimento estético, com um olhar criativo e renovador. A montagem cênica pretendeu mostrar sobretudo, a personalidade de Ayán. Teve como suporte enfático-melódico o bàtá, ritmo produzido nos terreiros nagô na cidade de Salvador (Brasil), enquanto que o vocabulário corporal teve a qualidade estilística do bàtá-corporal da cidade de Oyó (Nigéria).

Desta forma, originou-se um idioleto experimental, semântico, narrativo, cinestésico, transcrito e subjetivo, uma proposta também didática no cenário contemporâneo da arte/educação brasileira.

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Ensaio publicado no livro Pluralidade Cultural e Educação.LUZ,Narcimária(ORG.)Secretaria da Educação e Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil -SECNEB, Salvador, 1996.

Acompanhe outras pesquisas de Marco Aurélio Luz aqui, na Associação Crianças Raízes do Abaeté

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito. São Paulo: Palas Athenas, 1992.

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DREWAL, Margaret P. Dancing for Ogun in Yorubaland and in Brazil. In: Africa’s Ogun. (Ed.) Sandra T. Barnes, Indiana University Press, 1987, Cap. 9, 89-102.

DURAND, Gilbert. A imaginação Simbólica. São Paulo: Cultrix, 1988.

ELÍADE, Mircea. Mito e Realidade, São Paulo: Perspectiva, 1972.

GADOTTI, Moacir. História das Idéias Pedagógicas. São Paulo: Ática, 1993.

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OMOFOLABO, Ajayi S. Aesthetics of Yoruba Recreational Dances as Exemplified in the Oge Dance. Dance Research Journal, USA, v.21, n.2, p.1-8, Fall 1989.

OSTROWER, Fayga. Criatividade e Processos de Criação. Petrópolis: Vozes, 1993.

PETERSON, Wilferd A. A Arte do Pensamento Criativo. São Paulo: Best Seller, 1991.

PLAZA, Julio. Tradução Intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 1987.

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SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nagô e a Morte. Petrópolis: Vozes, 1986.

SANTOS, Deóscoredes M. dos. A Cultura Nagô no Brasil, Memória e Continuidade, Revista USP, São Paulo, n. 18, p.41-51, Junho/Julho/Agosto, 1993.

SNYDERS, Georges. A Alegria na Escola. São Paulo: Manole, 1988.

TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o tempo. São Paulo: Martins Fontes, 1990.