Ademir Barros dos Santos, Por dentro da África
Por que nós? Esta é a pergunta que atormenta os negros desde a segunda metade do século XV, e que ainda hoje não obteve satisfatória resposta.
Por que nós? Mesmo quando feita a europeus – que, de visitantes, passaram a conquistadores e escravizadores de África – não há quem responda consciente e claramente a esta pergunta; será que os europeus sabem por que cometeram tão profunda barbárie?
Estará nos livros a resposta?
Não, não está: talvez nenhum pesquisador, mesmo os mais dedicados à história africana, tenha, em algum momento, sequer formulado a instigante questão; por certo, se a fez, pouco encontrou em suas análises e conclusões.
Para além, nem mesmo os escravodescendentes que, por sua própria origem, deveriam questionar seu passado, parecem ter-se preocupado com tal indagação.
Por que nós? Afinal, a resposta não se encontra fácil em nenhum lugar; e não adianta procurá-la por aí, aleatoriamente.
Certamente se esconde, ela, entre fios históricos encadeados, enovelados, emaranhados, retorcidos e retrançados pela evolução econômica, política e social; mas que, é possível, não tenham sido devida e conjuntamente desfiados; talvez por isto, caiba, aqui, a tentativa de desemaranhá-los, mesmo que sem nenhuma certeza de sucesso na tentativa.
Por outro lado, é possível que a procurada resposta se dilua, sorrateira, entre filosofias que não se admitem, conscientemente, causadoras da ignomínia escrava. Ou estará em algum outro, desconhecido e disfarçado lugar?
É neste vazio que se coloca o presente estudo; não porque tenha, de alguma forma, destampado o buraco em que a resposta se esconde; mas, sim, porque busca lançar talvez incerta luz àquele momento histórico, em que a humanidade resolveu voltar-se para os africanos.
Para escravizá-los.
Primeiro fio: escravos na história
Muito se tem dito, muitas vezes incorrendo em graves erros, sobre o sistema de escravidão já existente, na África, antes da chegada dos portugueses.
Diz-se, por exemplo, que a escravidão europeia imposta à África, só foi possível porque africanos escravizavam africanos, não lhes sendo, portanto, novidade a escravidão dos inimigos. Antes, culpados, deveriam pagar, com a mesma moeda, o erro cometido.
É verdade. Em parte: já antes da incursão europeia, africanos escravizavam africanos vencidos, ou por dívida. Algumas culturas ofereciam, ainda, seus filhos, como garantia de empréstimos que, se não honrados, transformavam crianças em escravos do credor.
É verdade. Mas, esta escravidão era temporária, e compatível com o valor da dívida.
Quanto aos vencidos em guerra, via de regra, tornavam-se tributários dos vencedores. Não seus escravos.
Neste caso, e quando a escravidão acontecia, no mais das vezes, tinha por finalidade assimilar os vencidos aos costumes dos vencedores. Aos quais eram, posteriormente, integrados: esta a escravidão que vigorou, por exemplo, em Palmares e entre os fulas, conforme conta Amadou Hâmpaté Bâ, em seu Amkoullel, o menino fula. Assim também entre os imbangala, de quem Nzinga foi rainha.
Outro ponto: se a preexistência de escravidão como instituição social plenamente aceita é justificativa para o sistema cru de banimento compulsório que, a partir dos portugueses, passou a vigorar para a África, porque não se escravizou, por exemplo, os judeus, que também escravizavam judeus, do que nos dá prova a própria Bíblia[1]?
Ou que se escravizassem muçulmanos: afinal, foram eles os vencidos nas guerras de Reconquista; e também mantinham seus escravos! Só que escravos protegidos pelo direito civil, que dispunha, entre outros pontos, sobre casamentos entre escravos e livres, além de autorizar juízes a libertar escravos submetidos a maus-tratos, conforme documentam Peter Demant, em seu O mundo muçulmano, León Poliakov, em seu De Maomé aos marranos, além de outros autores de similar porte!
Não é demais lembrar que a dinastia dos mamelucos[2] iniciou-se com um escravo que assumiu o califado, no Egito muçulmano…
Enfim: a escravidão dos vencidos sempre foi instituição histórica; que não se despreze o fato de que os gregos desenvolveram-se assentados na escravidão! Há quem diga, inclusive, que a democracia só foi possível porque havia escravos na Grécia, o que permitia aos cidadãos, donos de todo o tempo livre e ocioso, filosofar.
Entre os romanos, é famosa a estória de Spartacus, o escravo cuja revolução abalou as estruturas do Império…
Por outro lado, há que se lembrar que o regime escravo, à época em que se inicia, pode ser considerado verdadeira evolução da sociedade: é a partir da escravidão que os vencedores param de matar, pura e simplesmente, seus vencidos, apenas para conquistar-lhes a terra.
Ainda mais: núbios e egípcios integravam os vencidos à sua sociedade, através da escravidão; não é outra a história dos judeus; especialmente a do ex-escravo José que, sujeito apenas ao faraó, acolhe no Egito sua família; da qual todos os judeus descendem, por que é naquele país, africano, que, de pequena família, transformam-se em nação[3]!
Não foi outra, também, a posição dos babilônios quando escravizaram os judeus: permitiram que Daniel, por exemplo, se tornasse o profeta que se tornou.
Por outro lado, diz a Bíblia que Joaquin, o Exilarca[4] “até o fim de sua vida, […] comeu na mesa do rei de Babilônia”[5].
Daí que novidade, mesmo, não foi a escravidão: foi, sim, a forma, o descaso, o fim e o intuito com que ela foi aplicada à África.
Para entender tal mudança de atitude, é preciso rever o ambiente que a propiciou, do qual se apresenta, a seguir, o que parecem ser alguns dos pontos principais.
Segundo fio: A Evolução Religiosa
Maomé vai à montanha
O período compreendido entre o final do século VII e o início do VIII, assistiu ao nascimento, crescimento e difusão da mais recente religião monoteísta hoje conhecida: o islamismo, de rápida expansão.
A nova fé logo se estendeu: a partir da Península Arábica, atingiu, a leste, a China; conquistou a Indonésia; dominou a Síria; espalhou-se para oeste, atingindo o Atlântico. No caminho, conquistou o Egito e todo o norte africano.
Logo a seguir, em 711 d.C., pelas mãos de Tarik, o mouro, foi levada a atravessar o Mediterrâneo, pelo estreito de Gibraltar – cujo nome, em árabe, significa, exatamente, montanha de Tarik.
Da montanha, a religião de Maomé espalhou-se por todo o sul da Península Ibérica, onde permaneceu durante quase oito séculos, só saindo definitivamente às portas do século XVI.
Neste período, é bom que se ressalte, viveu-se ali, com todos os percalços que o confronto político naturalmente traz, época de forte expansão cultural, sob batuta muçulmana; é período marcado pela tolerância entre judeus, cristãos e muçulmanos, que trabalhavam em estreita cooperação, produzindo cultura e evoluindo em diversas ciências, dentre as quais a astronomia, as matemáticas, a filosofia, etc.. Tanto assim que, para os historiadores, este é o período em que a atual Espanha é chamada “das três religiões”.
Mas os reinos não conquistados sempre resistiram, e em nenhum momento o domínio islâmico deixou de enfrentar guerras, por que tais reinos não combatiam simplesmente por política, por reconquista de território, mas, sim, pela defesa da fé, já que os muçulmanos, embora aceitando Cristo, o colocavam – e colocam – no mesmo patamar que Abrahão e Moisés: um profeta entre profetas, dentre os quais se destaca Muhammad – Maomé – que, para eles, além de mais recente, é definitivo.
Como resultado, da guerra política passou-se à guerra religiosa, já que, aos muçulmanos, é sagrado defender o que o Islã conquista; mas, para os cristãos, Cristo é Deus.
Maomé e Cristo, em decorrência e por seus antagônicos seguidores, adquiriram poder crescentemente retroalimentado por poderoso apelo, talhado no fogo da guerra e no tinir implacável de espadas cada vez mais afiadas, sangrentas, resistentes e mortais. Que se digladiam ainda hoje.
Cristo, ressuscitado, reconquista a Península Ibérica
Nesta luta pelo domínio da Península, os cristãos, no impulso da Reconquista, vêm até Ceuta, Fez, Alcácer-Quibir, etc., já na África, estendendo para lá a guerra: era preciso, enfim, destruir o poder muçulmano onde quer que se encontrasse, posto que só assim garantir-se-ia a segurança peninsular, com a certeza que Maomé não estaria preparando indesejáveis contra-ataques.
É neste ambiente que surgem heróis como os condes D. Henrique e seu filho Afonso Henriques, de tanta influência em nossa própria história, por consolidadores do Condado Portucalense, hoje Portugal; também Rodrigo Días de Bivar, chamado El Cid.
A partir de então, a fé dos Reis Católicos se espalha e permeia todas as suas ações: em janeiro de 1492, é firmado o pacto de rendição de Granada e os Reis recebem, das mãos do rei mouro, as chaves desta cidade; então, fazem o juramento solene de manter intacta a população local, bem como suas instituições, costumes, religiões e tradições.
Mas, é pensamento não revelado destes Reis, cuja bandeira ideológica é “um só território, um só povo, uma só fé”, que os muçulmanos, vencidos, devem ser expulsos da Península, retornando ao norte da África – de onde, segundo eles, nunca deveriam ter saído; a então instalada intolerância da fé cristã alcança, também, os judeus, considerando-os espúrios e nocivos à pureza religiosa.
Assim é que, em menos de três meses após o pacto de rendição – em 31 de março do mesmo ano de 1492, em que seria descoberta a América – é expedido o Édito de expulsão dos judeus, que recebem o prazo de quatro meses para abandonar o solo hispânico, sob pena de morte e confisco de bens!
É interessante notar que grande parte destes judeus gozava de apreciável fortuna, sendo financiadores do reino e dos municípios; Abravanel, um dos principais judeus financiadores do reino, publica nota de protesto contra a expulsão.
Mas, para Fernando, o Rei Católico, era então imperiosa a unificação religiosa, com rigoroso poder eclesiástico a servir de sustentáculo poderoso a seu governo, que pretendia centralizado e forte; lógico que o confisco de bens dos ricos judeus ajudaria, e muito, na obra sacra, especialmente pelo implícito perdão às dívidas que o reino obteria junto aos expulsos…
É então que grande parte dos filhos de Moisés parte para Portugal, que os acolhe, e que é vizinho da Espanha[6], tão amada pelos agora expulsos.
Mas, é tempo de peste em Portugal: mal chegados os judeus, e ela, que lá grassava há vários anos, alastra-se; o povo português, fanático e supersticioso, imaginou que estava perante castigo de Deus, causado pela acolhida aos hereges, matadores do Deus Vivo; é evidente que o ânimo contra os judeus, nativos ou recém-chegados, azedou-se.
Como fator de complicação, D. João II, de Portugal, casava, na mesma época, seu filho único, D. Afonso, com Isabel, a primogênita dos Reis Católicos. O casamento dura pouco: apenas oito meses depois, D. Afonso, durante um passeio, sofre queda de cavalo, morrendo instantaneamente; a viúva, supersticiosa e fanática, culpa, por esta morte prematura, a tolerância de D. João II para com os judeus, a quem passa a odiar, implacavelmente.
Daí que, doente, meio louco, instigado pelo clero, D. João II resolve converter à força os judeus nativos de Portugal, começando pelos da Corte; mas, em 25.out.1495, morre ele, envenenado; como seu filho único, D. Afonso, estava morto, seu sobrinho, D. Manuel, Conde de Beja, sobe ao trono português.
Porém, D. Manoel ambicionava o poder sobre toda a Península Ibérica, e propõe aliar-se à Espanha, casando-se com a viúva, ainda jovem, de seu primo morto; a idéia é bem vista pelos Reis Católicos, que também desejavam alianças com os portugueses, ambicionando concretizar interesses políticos contra outras monarquias europeias.
Porém, havia a infanta, conforme já acima exposto, jurado ódio aos judeus e, a conselho de sua mãe, também fanaticamente católica, escreve ao noivo, informando que não pisaria o mesmo solo que acolhia os pés sujos dos odiados judeus.
D. Manoel concorda e, em 30 de novembro de 1496, a assinatura do contrato matrimonial decide o destino dos filhos de Israel em Portugal: ou se convertiam, ou deveriam deixar o país no prazo de dez meses, sob pena de morte e confisco de bens!
D. Manuel espera vencer o prazo da emigração compulsória, ordenando que ninguém saísse do país senão pelo porto da capital; no dia fatal, mais de vinte mil pessoas ali apinhadas são comunicadas que havia expirado o prazo para a saída: ou aceitavam o batismo cristão, ou seriam, a partir daquele momento, propriedade do Estado e escravos do rei…
Como ato material, os judeus, apinhados, são batizados. Em pé. Eis ai o surgimento dos cristãos-novos, a partir de então e depreciativamente denominados “marranos”.
Entre a cruz e as Cruzadas
Embora os muçulmanos tenham mantido o poder na Península Ibérica por vários séculos, já por volta do ano 1000 os cristãos iniciam a retomada da Península: avançando rumo ao sul, demonstram eles, aos olhos do político observador, que podem vencer, e que é possível retomar Jerusalém, e encontrar, por lá, o Santo Graal[7], retomando o controle e a guarda do túmulo do Messias, então sob domínio muçulmano. Este o motivo religioso justificador das oito Cruzadas, que se iniciam em 1096 e só terminam em 1272.
É certo que o Santo Graal não foi encontrado; mas já a Primeira Cruzada cria o reino latino de Jerusalém.
A partir de então, a Cruz se espalha; mas se concentra: depois de dois fracassos retumbantes, a Quarta Cruzada resulta, em 1204, na criação do Império Latino de Constantinopla[8]; mas, provoca o cisma no poder papal – nasce daí a Igreja Ortodoxa.
A seguir, a Quinta Cruzada obtém, em 1221, a retomada da Santa Cruz, em poder do muçulmano Saladino desde 1187.
A Sexta tem por característica a diplomacia: é através dela que os Cruzados conseguem, em 1229 e pelo tratado de Jaffa, a recuperação de Jerusalém, Nazaré e Belém, cidades sagradas do cristianismo.
Fracassada a Sétima, a Oitava merece destaque não só por ser a última, mas, sim, porque nela perece, no cerco à cidade de Túnis, em plena África, o rei francês Luis X, que se torna S. Luís, o rei canonizado.
Ora: é entre a cruz ibérica e as Cruzadas que fica a África, caminho natural entre a Europa e Jerusalém.
Cristo se divide
Não se pode esquecer que a época da expansão dos reinos ibéricos através dos Grandes Descobrimentos, coincide com as turbulências do cristianismo tradicional, que enfrenta cismas diversos: entre o final do século XV e por quase todo o século XVI, de Henrique VIII a Calvino e Zwingli, da Alemanha à Inglaterra, surgem novas interpretações da fé cristã, enfraquecendo o poder papal de Roma.
A reação da Igreja Romana, talvez por pura defesa, talvez por puro ataque, exacerba a dedicação aos dogmas papais, o que faz, principalmente, a partir dos Reis Católicos, paladinos da Reconquista e da consequente expulsão de judeus e muçulmanos; portanto, a fé cristã original encolhe, ficando restrita ao poder papal de Roma, que se torna refém político da realeza ibérica.
Territorialmente também, o catolicismo não vai muito além desta Península e da Itália, já que boa parte da França e a Inglaterra, além de quase toda a Europa ocidental, enfim, está protestante, embora sob diversos matizes.
Ao sul da Península, reinam absolutos os muçulmanos. Ao norte e a leste, resta o mar.
Terceiro fio: A ciência como arma
Os conhecimentos árabes
No mundo medieval, nem sempre mouros e cristãos foram adversários; com efeito, os europeus da Era das Descobertas aparentemente obtiveram grande parte de seus conhecimentos de geografia das obras de eruditos árabes.
Assim é que, por volta do século XII, e graças à invasão muçulmana, a Península Ibérica conhecia as obras de Ptolomeu – o maior geógrafo da Antiguidade, cujos conceitos quanto às dimensões e à configuração da Terra dominaram o pensamento científico por mais de mil anos.
Mapas, mapas e mais mapas
Quanto aos judeus, é certo que deveriam, por questões religiosas, conhecer profundamente e desde sempre, pelo menos a astronomia e as estações do ano; este conhecimento era-lhes imprescindível e sagrado, pois dele dependia a fixação das datas das festas religiosas[9]; tanto assim que, enquanto houve Sinédrio[10], o controle do calendário era visto como tarefa sacerdotal.
Entretanto, o ano de 133 d.C. vê a destruição do reino de Judá e o consequente desaparecimento do Sinédrio, o que passa a impedir o conhecimento exato das datas festivas.
Como ansiada solução, é no século IV d.C., quando a opressão e a perseguição passam a ameaçar a existência dos judeus, que o patriarca Hillel II toma a extraordinária decisão de, para preservar a unidade religiosa, praticar a heresia santa de tornar público o sistema de cálculos do calendário.
A partir de então, e por decorrência das obrigações religiosas, passa a ser competência individual de cada judeu acompanhar a evolução do tempo para comemoração das festas santas – o que só podia ser feito pela observação astronômica, especialmente a inclinação do Sol em relação ao horizonte, além do acompanhamento dos sinais das estações.
Como consequência, e por motivos que só Deus sabe, surgem, na ilha de Maiorca, judeus que, unindo seus conhecimentos religioso-geográficos às informações trazidas por viajantes como Marco Polo, tornam-se grandes cartógrafos; isto, no momento histórico que precede imediatamente à época das chamadas Grandes Descobertas ibéricas que, em Portugal, são comandadas pelo infante D. Henrique, a partir de Sagres.
Cabe lembrar que, nos primeiros tempos da navegação, ainda anteriores à fundação de Sagres, os nautas pouco se afastavam da costa e, quando o faziam, fixavam a posição do navio pelo rumo e pelas distâncias percorridas; nas viagens subsequentes, os pilotos colhiam novos elementos, e os que vinham depois os aproveitavam, procurando ir um pouco mais além, colhendo novos elementos e elaborando mapas mais completos.
Foi com esta técnica de pesquisa e exploração, até por medo das superstições que cobriam o Oceano Atlântico – até então Mar Tenebroso – que os portugueses atingiram a foz do Senegal e, posteriormente, Angola e Moçambique, além de terras orientais.
É durante este período que a evolução da pesquisa e da ciência deu, por resultado, novos métodos para o cálculo de latitudes, dentre os quais as tábuas de declinação do Sol.
Quarto fio: o infante D. Henrique
No promontório sagrado de Sagres, o filho do Mestre de Avis, longe da corte, quase isolado do mundo, estudava as obras astronômicas e geográficas de Cláudio Ptolomeu e, auxiliado pelo catalão Jácome de Maiorca, perito na fabricação de bússolas e no traçado de cartas de marear, dirigia a preparação das expedições que, de lá, partiam, por ordem sua, a explorar os segredos dos mares.
Nascido no Porto em 1394, o infante era o terceiro filho de D. João I e da inglesa D. Filipa de Lencastre; profundamente religioso, o infante via suas explorações como forma de propagar a fé cristã, assim como de prover poderio econômico e político a Portugal.
Apesar de cognominado o Navegador por ter fomentado ativamente as grandes navegações portuguesas do século XV, o infante nunca comandou uma expedição; preferiu, antes, permanecer em Sagres, no extremo sudoeste de Portugal e, dali, ao longo de quase quarenta anos, dirigir seus capitães e suas tripulações no reconhecimento gradual da costa ocidental da África.
Isto porque, na alma do Infante português, ardiam duas paixões: o amor a Cristo e a Portugal, além do ódio ao Islã, que ameaçava a ambos; foram estas as paixões que o levaram, primeiramente, a Marrocos, para ali combater a raça odiada e, depois, a Sagres, para preparar as navegações que, esperava ele, haviam de levar os portugueses a combatê-la na Ásia.
Com efeito, os muçulmanos ameaçavam a Europa pelo oriente e pelo sul e, para destruir a fonte de seu poder, era preciso aniquilar, na Índia, seu comércio com a Europa, visto que era este que, na visão de D. Henrique, lhes dava as rendas que precisavam para manter seus temíveis exércitos; mas, para tanto, era necessário ir por mar, circundando a África.
D. Henrique, cujo ódio ao Islã, que o levara a Ceuta e Tânger, se avivara com a derrota sofrida nesta última cidade, exacerbando-se, por certo, com a lembrança dos sofrimentos de seu irmão D. Fernando, futuro santo, então prisioneiro em Fez, estava em perfeitas condições para comandar a empreitada, conforme o fez.
Mas, ele morre em 1460, com 66 anos de idade, no seu paço na ponta de Sagres: à época, seus capitães já haviam contornado o Golfo da Guiné, começando a se dirigir para o sul, rumo ao extremo do continente africano.
Quinto fio: a África, no imaginário português
A traição da geografia
O continente que viu nascer o ser humano, não soube se esconder: ficou à mostra, talvez expondo ao mundo o orgulho de haver servido tão bem à divina função de ter sido a maternidade que pariu a humanidade.
Assim, postado está, orgulhoso, entre o Atlântico e o Índico, do Equador ao sul, logo aos pés de Espanha e Portugal. A leste, os árabes; a oeste, o oceano; logo após, o Novo Mundo.
Ali colocado, o continente está no caminho das Índias; se não por terra, está por mar; e provocou, nos portugueses, a escolha do segundo caminho, já que o primeiro era monopólio árabe: ou seja, do inimigo muçulmano.
Exibido, o continente atraiu os portugueses para suas terras, e lhes mostrou suas riquezas, disposto, até, a partilhá-las. Só que os portugueses, naquele momento da Idade Média, precisavam muito mais de dinheiro que de amizades.
Depois, mostrou aos portugueses, cujo exemplo logo foi seguido por diversos outros europeus, o caminho aberto em pleno mar, onde era fácil a navegação, pela falta de ciclones; caminho que, partindo da África, segue, vela ao vento, direto ao leste americano, porta de entrada para o escravismo que se seguiria.
Exibido ainda, o continente lhes mostrou seu povo – que não conhece a propriedade individual da terra que ocupa, pois entende que a terra pertence aos deuses; e que não teme os estrangeiros, vez que, possuindo tudo, nada possui; portanto, nada lhes pode ser roubado.
Daí que não se defendia contra estranhos. E não conhecia a escravidão de exportação, indústria de degredados, da qual se arranca a alma para usar o corpo até a prematura morte.
Terra de Ninguém, pareceu a África aos intrépidos portugueses.
É que a geografia, pródiga com a África, a colocou, larga, entre dois oceanos; mas a colocou no caminho das Índias e de Jerusalém, entre povos em guerra, que não a respeitaram, e a escravizaram, à busca de tesouros indefesos, sob a desculpa que a religião, desde que monoteísta e fundamentalista, lhes fornecia justificativas para tanto.
As notícias do ouro
Ali, naquele continente tão exposto, a Natureza deixou riquezas que, aos exóticos povos em guerra, interessavam como fonte de financiamento ao esforço bélico. Depois, riqueza sempre interessa a todos, especialmente a quem tem ganância suficiente para matar por ela.
Aliado a tudo estava o imaginário medieval, encravado entre as tradições grecorromana e cristã; para além, nobres e clérigos, da mesma forma que o homem comum, também anseiam por um mundo melhor; afinal, todos têm os mesmos medos, as mesmas inquietações e superstições; daí o terreno fértil para o florescimento de utopias, que povoavam o imaginário da época: todos viviam sob constante pressão, pois o medo andava à solta.
Para o homem medieval, as catástrofes, quer naturais, quer desencadeadas pelo homem, representavam castigo dos céus: secas, inundações, guerras, pestes, eram vistas, mais que tudo, como ações do Demônio monoteísta, inimigo da Perfeição, e que não se cansa de rondar a alma humana, posto que anda à espreita de fraquezas da carne, levando ao Pecado; a Igreja de então fortalecia a visão do fogo do Inferno após a morte, com o que mantinha seu sagrado domínio e seu intenso poder.
Assim, o medieval precisa dar asas à fantasia para aliviar o medo; e nela, busca as Ilhas da Felicidade, o paraíso terrestre, a Fonte da Juventude, que garante permanecer longe da morte.
Nesse ambiente, é o que sonham os poderosos; e esta visão de sonho, que povoava o imaginário da época, foi fortalecida pelos incríveis relatos do mundano Marco Polo, que tantos tesouros descreveu como existentes nas fabulosas terras exóticas percorridas.
Ao lado disto, documentos anônimos e em vários idiomas percorrem a Europa, simulando correspondência direta com o poderoso Preste João, rei cristão, dono de riquezas incalculáveis e possível descendente de Salomão com a Rainha de Sabá.
Considerando esta linha de pensamento, o trabalho dos cartógrafos passa a ser essencial para o percurso de novas rotas que, pretensamente, levariam à conquista das tão sonhadas riquezas; no Atlas de todo este universo, mesclando lendas e realidade, onde se insere o imaginário medieval, um ponto é certo: as utopias estão cheias de ouro e riquezas, sinônimos de felicidade.
Ora, acontece que os judeus transmitiam, em seus mapas e relatos, informações sobre a zona onde se localizavam as minas do ouro que comerciavam; é nos mapas feitos por judeus de Maiorca que começam a aparecer referências às incríveis riquezas africanas: no mapa de África do Atlas Catalão, de 1375, de Abraão Cresques, está desenhado um rei africano – possivelmente Mansa Musa, do Mali – com enorme pepita de ouro na mão; a seu lado, um caravaneiro árabe.
Diante deste mapa, os europeus concluem: o rei é Preste João e, para além do deserto do Saara, há riquezas incalculáveis!
Mas, este mapa não era o único; havia muitos outros aliciantes desenhados pelos judeus de Maiorca e por outros cartógrafos, incluindo, sempre, ilhas fantásticas a par de reais, além de monstros marinhos e figuras imaginárias de animais e de homens.
Então, era assim: pouco se sabia do mundo, misturando realidade e fantasia, terrores e sonhos de grandeza, infernos e paraísos; para que os homens viessem a conhecer o mundo como de fato é, alguém tinha que romper com séculos de tradições enganosas.
… e foram os portugueses que primeiro enfrentaram o desconhecido: contra ventos e marés, obrigados pelo poder do Infante[11] e vencendo o próprio medo, espantados pela peste e dispostos a vencer os monstros, se os houvesse, e a contornar os abismos de que falavam os antigos, se existissem, zarparam em busca da tal terra de ouro e de Preste João das Arábias…
O Reino de Preste João
Mas, onde Preste João assenta seu trono de ouro? Nas Índias? Ou na África misteriosa, reduto longínquo do ouro inatingível?
Estas as perguntas que se faziam eles, a partir da lenda, que se difunde a partir do século XII, visto que Marco Pólo afirmava ter viajado por terras deste lendário rei, dizendo-o cristão, e a crença na existência deste reino negro se torna tão arraigada que, frequentemente, os cartógrafos o desenhavam em seus mapas – a princípio na Ásia; depois, na África.
D. Henrique, que acreditava que aquele rei, mítico e rico, seria o da Etiópia, reino cristão desde o século IV, esperava encontrá-lo para que se tornasse seu aliado na luta contra os mouros.
O Reino português da escravidão
Em 1520, os portugueses chegam, por fim, à Etiópia. Na passagem, encontram o Senegal; lá descobrem, sobretudo, imensas riquezas: marfim, ouro, especiarias, etc… e encontram um povo mesclado, talvez um pouco mais negro que os mouros.
Depois, trata-se de um povo estranho, que vive em clãs, comandados por reis sujeitos a anciãos, onde nada é de ninguém, já que tudo é de toda a sociedade; que crê nos antepassados como parte atuante da família, só que vivendo no mundo intermediário localizado entre deuses e viventes; que não vê, no ouro, tanta riqueza; que não estranha estrangeiros, pois acredita que eles, também, têm seus próprios deuses; e seu próprio clã.
Mas, é um povo que possui seus deuses e ouro, mesmo sem saber que existe Cristo; portanto, se torna imperioso cristianizá-los e livrá-los, por hereges, de qualquer pretensa riqueza material; daí que, até por obra pia, acontece o inevitável início da escravidão africana, que tem data marcada: 08 de agosto de 1444[12].
Esta a grande aventura dos Descobrimentos Portugueses: desenrolada no exato momento entre a Idade Média e a Moderna, culmina com a conquista do Novo Mundo; mas só se consolida porque apoiada sobre mão de obra escrava, já que a geografia colocou a África no lugar que, por ganância estrangeira, se mostrou errado, e a tornou fornecedora onipotente e onipresente de mão-de-obra que, além de ingênua, mostrou-se próxima e natural.
Mas… Não para por aí
Esta a grande aventura dos Descobrimentos Portugueses: embora aos lusos o Novo Mundo apresentasse condições climáticas bastante adversas, aos africanos apresentavam-se elas até mais amenas que na terra natal: portanto, estão eles, naquele momento, perfeitamente acostumados ao inferno climático americano!
Decorre a dedução lógica: basta acostumá-los, também, às senzalas novas, navegando em linha reta entre Angola e Pernambuco, em mar aberto, sem temer as quase inexistentes tempestades e, de quebra, convertê-los à fé cristã – tornar-se-ão, inevitavelmente, tão inimigos dos muçulmanos quanto qualquer outro cristão, protegendo a costa africana contra possíveis ataques de hereges inimigos! Depois, há tantos tesouros a conquistar…
É, talvez, Fernão de Loronha – ou Fernando de Noronha -, capitão hereditário de Pernambuco – dentre todas, a capitania que mais deu certo – que converte ideia em prática e, aproximadamente em 1551, resolve pedir autorização à Coroa para importar mão-de-obra africana, já escrava, como há mais de cem anos acontecia em Lisboa.
O Reino aceita a ideia; e o clero, por pura obra pia, abençoa a decisão, dando início à construção do Novo Mundo: sobre costas curvadas e exiladas de África, convertidas à força à fé cristã, embora espoliadas de vontades, riquezas, costumes e clãs. De humanidade, enfim.
No momento seguinte, já descobertas as Américas e o ouro americano começando a fluir, à larga, para os cofres espanhóis, ávidos ingleses, franceses, holandeses, já não sujeitos ao Papa e por motivos já não mais acobertados como religiosos, resolvem entrar na guerra de conquista americana. Sobre braços africanos, que estavam logo ali, disponíveis, para a formação forçada deste Novo Mundo Atlântico.
Eis aí a nova escravidão, que destina negros à senzala social; de onde está difícil sair, pois a História continua.
Conclusão
Não está aqui a resposta à impertinente pergunta Por que nós, os negros? Não, não está. Não está porque demanda, por certo, maior afinco de pesquisa, mais alento e maior talento do pesquisador.
Mas talvez congregue, em suas poucas páginas, alguns dos tópicos em que, se melhor olhados, se esconde, arredia, a ansiada resposta; que dorme, tranquila, seu sono dos injustos.
Bibliografia
Alencastro, Luís Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000
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[1] Segundo o Livro Sagrado, é Deus quem orienta Moisés sobre a lei dos escravos. Inclusive judeus; e o próprio Moisés, em seus deuteronômios, repete a orientação, especialmente sobre os escravos judeus. Dos judeus. A respeito, Êxodo 21, e Deuteronômio 15:12-18. A propósito: deuteronômio significa segunda lei.
[2] Em árabe, mam’luk – o que pertence a alguém.
[3] De José ao Êxodo Bíblia Sagrada, Gênese 39 a 50; quanto aos israelitas que deixara o Egito, Êxodo 1.
[4] Monarca no exílio.
[5] I Crônicas, 25:29.
[6] A Sepharad bíblica, de onde a fé judaica de linha sefaradita.
[7] O cálice da Última Ceia
[8] Esta Cruzada destrona Focio, o Bispo de Constantinopla, cujo poder religioso, até antes do início das Cruzadas, era similar aos demais bispos, quer de Paris, quer de Roma, quer de Jerusalém; daí o Cisma, que cria, em Constantinopla, poder religioso paralelo e antagônico àquele centrado em Roma.
[9] Sobre a fixação das datas das festas sagradas, Levítico 23: 4 em diante.
[10] O Conselho Rabínico constituído.
[11] Toda a saga é descrita em Chronica do descobrimento […], de Gomes Eannes de Azurara, disponível em <http://purl.pt/216/3>
[12] Data também documentada na obra citada acima.
* Coordenador da Câmara de Preservação Cultural do
Núcleo de Cultura Afro-Brasileira – Nucab – da
Universidade de Sorocaba – Uniso.