“Ñjînga: a Rainha de Angola” e a cooperação com Portugal

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Ilustração da rainha Nzinga em negociações de Paz com o governador português em Luanda em 1657.

Por Patricio Batsikama, Por dentro da África 

Luanda – Foi lançado, há algum tempo, o produto fílmico “Ñjînga. Rainha de Angola” que estreou no Centro das Convenções de Belas. Meses antes da filmagem, tive a honra de participar nos aconselhamentos, pelo menos, no âmbito da observância histórica, numa conferência que se passou no Centro de Convenções de Talatona.

Enquanto produto artístico, de modo geral, o filme tem alguma qualidade artística, parece cumprir objetivos socializadores (e não estéticos apenas) e alcança dois propósitos: (i) reconstruir artisticamente uma nova mwêne Ñjîng’a Mbândi; (ii) disponibilizar esteticamente o mundo mbûndu/angolano dos século XVI (com os mesmos problemas de hoje, mas com contextos diferentes ou semelhantes.

Enquanto reprodução ou instrumento reprodutivo da História, no geral, a cobertura histórica é interessante; vários aspectos ilustram a cosmogonia mbûndu no passado; em particular, a observância das diacronias históricas é relativa (e algumas omissões resultariam de pouco conhecimento sobre esta nobre figura de mwêne Ñjînga.

Sobre a relação entre Angola e Portugal nos dias de hoje, Mwêne Ñjîng’a Mbândi defende dois pontos: (i) libertação das terras dos seus antepassados, e a aplicação das leis dos seus antepassados e expulsar toda imposição externa; (ii) cooperação a título de igualdade, na base de Amizade.

A resistência de mwêne Ñjîng’a Mbândi é uma herança histórica rara e ímpar em África. Esta resistência terá sido possível por quatro razões: (i) respeito pelas instituições; (ii) determinação as suas crenças e ideais; (iii) defesa das terras dos seus ancestrais; (iv) consciência da parceria ou cooperação com ademais para garantir a independência política, econômica e cultural. Que lição tiramos hoje?

Interessa-me inspirar-se da mwêne Ñjînga Rainha de Angola para lançar algumas reflexões sobre a cooperação Angola-Portugal. Como o meu leitor deve saber não sou especialista em Relações Internacionais, mas historiador.

Cartaz do filme - Divulgação Quando Paulo de Novais criou a cidade de Luanda, as orientações da coroa portuguesa eram de submeter as populações desta região às leis portuguesas (católicas). Ora, no país de mwêne Ñjînga, as “leis estão ligadas com as suas terras”, e todo cidadão desta região (inclusive as terras setentrionais e meridionais a Ndôngo/Matâmba) respeitava as instituições (sempre ligadas as suas terras). Logo, os propósitos da coroa portuguesa deveriam ter uma resposta. Mwêne Ñjînga Rainha de Angola antropomorfia esta resposta.

Luanda foi criada, também, como “local do poder religioso”. As sociedades angolanas do século XVI (mesmo até os nossos dias) dificilmente separam “o religioso” da vida. Quer na doença (subjetivo) quer na economia (objetiva); quer na conquista do saber científico (subjeto) quer na vida política (objetivo), não se separa o suporte religioso.

Mwêne Ñjînga Mbândi aceitou a “fé católica” não para salvar a sua vida (depois da morte, como se diz entre os cristãos), mas sim para uma questão de princípio na cooperação com os portugueses. Por isso, continuou a respeitar a religião mbûndu. Isto tinha dois sentidos: (i) exprimir a sua insubordinação perante Portugal, senão a mera cooperação; (ii) garantir o apoio da população e dos seus ancestrais que ninguém atreveria trair.

Defesa das terras dos seus ancestrais

A terra tem uma significação importante na cosmogonia angolana (côkwe, kôngo, mbûndu, umbûndu). Existe um tronco proto-bantu: “xi”. Este termo tem três sentidos: (i) chão: que junta os vivos dos mortos; (ii) espaço regido consoante as normas dos defuntos; (iii) o mundo que explica a nossa existência (como pertencente ou como não-pertencente). Na base destes três pontos, era praticamente impossível mwêne Ñjînga, assim como os seus antecessores, deixar que as suas terras (chão, espaço, mundo) fossem territorializadas. Criar, na mente deles, uma autêntica desordem, ruptura e desequilíbrio.

Cooperação

mapa-de-angolaHavia em mwêne Ñjînga – isto não é mito – uma capacidade enorme da diplomacia: (i) era uma pessoa aberta e expressava claramente as suas ideias: pelo menos as escritas, ainda que fosse outra pessoa a escrever por ela; (ii) tinha consciência sobre os “capitais da negociação: ela foi clara, em Luanda, em dizer que os espaços ocupados pelos portugueses pertenciam aos seus ancestrais; e negociou na base de igualdade (e não de inferioridade). Na mesma senda, ela soube negociar com soberanos angolanos, quer com Jaga Kasanzi, quer com o rei do Kôngo… na colusão de resistir contra os Portugueses na defesa das terras dos seus ancestrais.

Na base de tudo isto, a minha opinião é simples: que Angola classifica “mwêne Ñjîng’a Mbândi Patrimônio Nacional”, para depois visar o patrimônio da Humanidade. Devemos se ensinar aos nossos filhos – de forma clara e estratégica – que a figura desta “mwêne/soberana” é para imitar, para proteger a nossa terra (Angola) e defendê-la a todo custo (pátria). Devemos ensinar as nossas crianças – desde tenra idade, no Jardim Infantil – que “mwêne Ñjînga Rainha de Angola” valorizou a cooperação (e nunca a submissão) com ademais pessoas, mas com os interesses bem definidos para as partes.

Portugal não é um qualquer país para cooperação. Numa entrevista eu dizia que existe um Portugal em Angola, como uma Angola em Portugal”: somos condenados a manter as nossas relações de cooperação entre Estados, e dificilmente evitaremos. É como dois irmãos que não queiram ser irmãos. Deve se tratar de uma cooperação – a nível de Estado – carimbada de cumplicidade e de confiança. E seria desperdiço virarmo-nos as costas. Os Côkwe dizem: “as pessoas não podem virar-se as costas”.

A estátua integra o acervo museográfico no Museu Nacional das Forças Armadas, em Luanda Na minha sala de aula, confrontei-me com os meus estudantes ao defender a necessidade da prestação qualificada dos portugueses em Angola. Para eles, finalistas em História, a via do neocolonialismo estava oficialmente aberta de maneira o seu desemprego (depois da formação) estava garantido. Expliquei a eles, como explico agora ao meu leitor anônimo, que Angola precisa de Portugal em vários domínios: (i) educação, talvez por causa da língua, apesar de poucas universidades portuguesas constarem no ranking europeu em 2012; (ii) cultura, pois o angolano (como o português) é um mestiço cultural em vários aspectos (mesmo para os kimbo angolanos mais distantes da portugalidade: língua portuguesa, por exemplo); (iii) comunicação social; (iv) política; (v) etc. Na mesma moeda, Portugal precisa de Angola em vários domínios: (i) política; (ii) cooperação a nível da CPLP; (iii) finanças; (iv) cultura…

A figura de “mwêne Ñjînga Rainha de Angola” – espero que seja classificada a nível nacional como Patrimônio – pode inspirar-nos perspetivar as futuras cooperações entre Angola e Portugal, e não só. Perante a arrogância americana, por exemplo, Angola diz basta! E os militares angolanos – exemplo a seguir – selaram a Paz. Ainda assim, Estados Unidos da América têm muito a trocar – na base de igualdade e longe das imposições – com Angola. Este é o espírito que mwêne Ñjînga nos legou… e o filme lançado recentemente – apesar de algumas críticas a nível estético que tenho – parece-me ter alcançado esta meta. Mas será mais produtivo caso o Governo angolano (falo do Ministério da Cultura) classificasse a soberana como patrimônio nacional.

Mwêne Ñjînga Rainha de Angola percebeu, também, que os militares eram garantes da integridade territorial. Ela fazia questão de cuidar bem deles, garantir a integridade física deles e, sobretudo, ouvir atentamente os seus kibênga/tândala (chefes militares)… nas suas estratégias.

Patrício Batsîkama é historiador, filósofo e doutorando em antropologia pela Universidade Fernando Pessoa, em Portugal.

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