Natalia da Luz, Por dentro da África
São Paulo – Comemorado no dia 20 de novembro, o Dia da Consciência Negra reforça um debate urgente dentro da sociedade brasileira, ainda tão impregnada pelo racismo, pelos resquícios da escravidão, que durante 300 anos trouxe “à força” mais de 4,8 milhões de africanos para o Brasil. Com a maior população de negros fora do continente africano, o país ainda olha sem a importância devida para a África e começa a abrir os olhos para o abismo de oportunidades entre brancos e afrodescendentes, que representam 51% da população brasileira.
A data de hoje foi escolhida para lembrar o dia da morte, em 1695, de Zumbi dos Palmares, o último dos líderes do Quilombo dos Palmares, o maior dos quilombos do período colonial (localizado hoje em Alagoas). Durante a entrega do 11º Troféu Raça Negra ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na Faculdade Zumbi dos Palmares, em São Paulo, Lula lembrou que, ao longo dos séculos, os negros foram tratados no Brasil como se ainda não tivessem conquistado sua liberdade, se ocupando apenas de profissões descartadas pelos brancos. Ele recebeu o prêmio considerado o Oscar da Comunidade Negra, oferecido a outras 12 personalidades mundiais em noite de gala no último dia 17.
– Eu não entendia porque os negros eram tratados aqui como se fossem cidadãos de quinta, sexta ou de nenhuma categoria. Não entendia por que os afrodescendentes eram segregados no país. Faltava um artigo na Constituição para garantir a igualdade entre todos nós. Só que muito mais do que a ausência de um artigo, era a ausência de um artigo na cabeça da elite dominante desse país que, em 500 anos, fez questão de tratar os negros como se não tivessem conquistado a liberdade – disse Lula em encontro que reuniu, na última segunda-feira, o presidente da Guiné Conacry, Alpha Conde; o reverendo Jesse Jackson; a escritora e deputada angolana, Irene Neto; e José Vicente, reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares, a primeira instituição do país dedicada aos negros.
Lula disse que, para enxergar essa necessidade, era preciso também que os afrodescendentes recuperassem a sua autoconfiança, aautoestima e que sonhassem grande sem depender de autorização para serem tratados como cidadãos de primeira categoria e com direito à educação. Nesse quesito, a Lei nº 12.711/2012 garante a reserva de 50% das matrículas por curso e turno nas 59 universidades federais e 38 institutos federais de educação, ciência e tecnologia a alunos oriundos integralmente do ensino médio público, em cursos regulares ou da educação de jovens e adultos. Os demais 50% das vagas permanecem para ampla concorrência.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a taxa de analfabetismo dos brasileiros diminuiu na última década, passando de 12,3%, em 1999, para 9,7%, em 2009, o que representava 14, 1 milhões de analfabetos. Apesar dos avanços, tanto a população de cor negra quanto a de cor parda possuem mais do dobro da incidência de analfabetismo. Enquanto há 5,9% de brancos analfabetos, o percentual de negros e pardos nessa condição supera o de 13,3%. De encontro à queda, os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), divulgados no mês passado, revelam que o número de analfabetos sofreu um acréscimo de 300 mil em 2012.
Data emblemática para a criação do Ministério. Breve histórico sobre o apartheid
Criada em 21 de março de 2003, a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial tinha como objetivo o reconhecimento das lutas do Movimento Negro Brasileiro, a promoção da igualdade e o combate à discriminação. No mesmo dia, é celebrado o Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Social, instituído em 1969 pela Organização das Nações Unidas em memória ao Massacre de Sharpville, na África do Sul.
Em 21 de Março de 1960, milhares de negros sul-africanos se reuniram em Sharpville, África do Sul, contra a Lei do Passe, que obrigava os negros a usarem uma caderneta que informava aonde eles poderiam ir. A polícia sul-africana conteve o protesto à bala, provocando a morte de 69 pessoas e ferindo mais de 180.
Durante o apartheid (de 1948 a 1994), os negros representavam quase 80% dos sul-africanos, obrigados a viver em pouco mais de 10% das terras, mais secas e precárias da rica África do Sul. Os antigos lares nos bairros mais centrais foram obrigatoriamente trocados pelas townships, áreas precárias das cidades. Em suas cidades, os negros só poderiam transitar com um passe (dompas), revogado em 1986. Os que não possuíam o documento estavam sujeitos à prisão imediata.
Na saúde, quando precisavam de atendimento médico, brancos eram atendidos em hospitais com padrão europeu, enquanto negros sofriam com a falta de recursos. Na educação, a criança negra custava ao governo um décimo da branca e, mais tarde, nas universidades, o espaço novamente era dos brancos. No transporte, ônibus para negros e brancos paravam em pontos diferentes, os trens lotados e mal-acabados eram dos negros. No entretenimento, as melhores praias, piscinas públicas, cinemas, restaurantes e bibliotecas ficavam com os brancos… Era a ditadura dos brancos sufocando os negros, proibindo até mesmo o casamento entre sul-africanos negros e brancos.
Críticas ao Ministério
Lula destacou que, na ocasião da criação da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial, recebeu críticas de muitas pessoas que nunca haviam criticado outras secretarias, mas que, naquele momento, questionavam o direito de dizer que os negros mereciam ser tratados com cidadania e que teriam um ministério para que organizassem suas questões.
– Quantas vezes diziam que eu estava fazendo uma política de reconhecimento dos quilombos do Brasil… Falavam: Já não chega as terras para os índios? Agora vem o Lula querendo que os negros recuperem suas terras antigas? Não foi e não é uma batalha fácil porque muito além da lei, temos que enfrentar a história, o preconceito.
O preconceito que ronda as ruas, as empresas, as universidades, o imaginário de muitos brasileiros é provado na proporção de oportunidades oferecidas aos negros e brancos. Segundo dados do IBGE, em 1999, 34% dos brancos entre 18 e 24 anos cursavam o ensino superior, enquanto o percentual de negros e pardos era de 7,5% e 8% respectivamente. Em 2009, o instituto registrou 62% de estudantes brancos no referido nível de ensino, enquanto o percentual de negros e pardos era de 28,2% e 31,8%, respectivamente.
– Quando eu era presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, eu dizia: Quando será que um negro será chefe na Volksvagem, na Scania, na Mercedes, na Ford…? Quando será que eu vou chegar no banco e verei um negro como gerente e não apenas como faxineiro. Quantas vezes sonhei chegar em um lugar e ver uma menina negra como chefe de departamento e não como empregada doméstica… Isso acontecia porque a visão do país era essa: Nordestino é glorificado em São Paulo porque faz prédio, e negro é glorificado porque é faxineiro, porque faz um trabalho que o branco não quer fazer. Nós provamos que é possível. Ainda estamos longe, mas agora somos muitos que não têm vergonha de dizer que são negros.
Relação com a África
Em 2003, foi aprovada a Lei n 10.639, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, tornando obrigatório o ensino da história e da cultura africana e afrobrasileira na educação básica. Apesar dos inúmeros desafios para a sua aplicação nas escolas, ela se apresenta como uma oportunidade concreta para fortalecer o diálogo entre Brasil e África e contra a discriminação.
Durante o discurso, Lula disse que nunca conseguiu entender por que o Brasil tinha tanta dificuldade em estreitar as relações com o continente africano, já que “tínhamos” orgulho de dizer que o nosso país era o segundo país do mundo em população negra depois da Nigéria.
– Uma das coisas mais extraordinárias que aconteceram no Brasil nesses últimos anos, foi o país perder a vergonha de olhar para o continente africano e não tratar a África comum um único pais, mas como um continente de muitos países, com culturas diferentes e a região que foi o berço da humanidade.
Provar a competência
Em discurso na Faculdade Zumbi dos Palmares, Lula reafirmou que o maior desejo na caminhada contra a desigualdade racial é ter oportunidade para provar a competência.
– Nós precisamos levantar e afirmar que não queremos o lugar de ninguém. Cansamos de ser faxineiros, de ser pedreiros, cansamos de ser assassinados, antes de saber se cometemos algum crime… Queremos ter o direito de ser diplomata, advogado, engenheiro, médico, afinal, onde está o estudo de DNA que diz que os negros não são capazes? Nós apenas não tivemos acesso às oportunidades.
Por dentro da África