Virginia Yunes, Por dentro da África
Nascido em Bissau, capital da Guiné-Bissau, Abdulai Sila é um nome reconhecido na literatura do seu país. Escritor, mas também engenheiro, economista e investigador social, o guineense analisa a importância da escrita a partir de uma geração que sonhou e lutou pelo fim do colonialismo. Leia a entrevista especial!
“Eu faço parte de uma geração que viveu o fim de colonialismo, que foi uma autêntica epopeia. Sentimos que algo de muito positivo e extraordinário estava para acontecer em nossas vidas. Fé em nós e no futuro, fé nas pessoas que tinham a missão de liderar o país, mas toda essa fé foi se desmoronando como um castelo de areia”, contou Sila ao Por dentro da África.
Uma das motivações para a sua escrita militante foi a situação política, a vivência da guerra pela independência, que ocorreu em 1973. Ele lembra que a guerra e a morte estavam muito presentes.
“Uma bomba caiu e meu melhor amigo ficou paraplégico. Alguns anos depois ele faleceu. Eu tinha uma relação muito forte com ele. Conversávamos sempre e após seu falecimento continuei a sentir necessidade de conversar com ele. Comecei a escrever um diário, onde eu contava o que estava acontecendo, nossos sonhos…”
As memórias da luta pela liberdade estão presentes além das fronteiras da Guiné-Bissau. Três anos depois do fim da guerra em Bissau, houve o massacre de Soweto, na África do Sul (ocorrido em 16 de junho de 1976). Como forma de manifestar solidariedade, ele e alguns colegas da escola criaram um jornal.
“Eu escrevi o editorial que marcou a minha carreira. Lembro que professora de português leu aquilo e perguntou: ‘Quem escreveu?’ Ela disse que eu deveria continuar a escrever. Eu acreditei nisso e segui o conselho. Em seguida, comecei com ficção… Já não era aquilo que acontecia, mas aquilo que eu queria que tivesse acontecido.”
Com menos de 20 anos de idade Sila já tinha lido alguns livros que tiveram muita influência naquilo que hoje ele escreve como obras do luso-angolano Luandino Vieira e do brasileiro Jorge Amado.
Nos anos 80, como estudante de engenharia na Universidade Técnica de Dresden (Alemanha), ele escreveu seu primeiro romance. Ganhou de um senhor alemão um exemplar de ‘Sula’ (1973), escrito por Toni Morrison, que o deixou impressionado pela escrita. Também na Alemanha, um dramaturgo o presenteou com ‘Macbeth’, de Shakespeare, e pediu a ele que escrevesse uma versão africana.
“Descobri depois que existia até a versão japonesa de ‘Macbeth’. Com a situação pós-guerra, com a frustração que se seguiu vi que havia muito teatro neste país, tudo era palco de teatro, sobretudo aquilo que eram as palavras e atos dos políticos. Era tudo uma farsa, então decidi aventurar-me no mundo do drama. Como eu não tinha nenhum conhecimento prévio pesquisei por dez anos para ter o material pronto para escrever, por isso não publiquei de 97 a 2007”.
Em 2007, eo guineense publicou ‘Orações de Manacá’ e, com o resto do material, escreveu o segundo livro ‘Dois tiros e uma gargalhada’ e ainda tem matéria-prima suficiente para fazer um terceiro!
Importância da literatura na sociedade atual
Hoje, aos 62 anos, Sila destaca que o escritor é uma espécie de missionário que transmite a ideia de um amanhã melhor. Para ele, as pessoas, naturalmente, preferem ir para o paraíso, mas para isso você tem que fazer alguma coisa e é aí que aparece a analogia com o escritor.
“O escritor tem que vender a ideia de um mundo melhor e, ao mesmo tempo, mostrar uma espécie de receita, aquilo que precisa fazer para ganhar o lugar no paraíso. Quando se escreve com essa ideia na cabeça, é preciso o diálogo entre os cidadãos, tem que conversar, tem que partilhar ideias. A verdade é que a literatura acaba sendo limitada a uma elite. Fazemos parte de uma população não tem a possibilidade de exercer esse direito de ir à escola e ter uma educação.”
Autor de ‘Eterna Paixão’ (1994), considerado o primeiro romance guineense, ele destaca que, em sua trajetória, ele é parte do ‘nós’, da ideia de coletivo que ele prioriza no contributo para o desenvolvimento comunitário.
“Essa elite está, de certa forma, em um confronto de ideias, o que é correto e não correto. Nesse contexto é que eu escrevo e quem me lê é uma minoria, mas, é essa minoria que decide o destino do país, que gera o país”.
Sobre o seu engajamento, ele conta que decidiu desde muito cedo, na sua adolescência ainda, que nunca faria aquilo que não estivesse de acordo. Esse sentimento de rebeldia nasceu sob o julgo colonial, cresceu nele e o manteve vivo, segundo o autor.
“Queriam que rejeitássemos a nós mesmos e assumíssemos outra identidade. Para ter alguma oportunidade era necessário fazer o jogo, nesse caso concreto, ingressar no partido. Algo em mim rejeitava isso, então eu nunca entrei em nenhum partido ou organização. Procurei agir de acordo com minha consciência”.
Relação com livro na infância
O escritor diz que nunca houve livro em sua casa. Os únicos eram os livros escolares que as crianças tinham acesso. Para ele, o livro deveria ser um bem comum, acessível a todos, mas era um objeto da elite da época. Quando houve a mudança do sistema politico e foi permitido ter maior liberdade de expressão, Sila se uniu a dois amigos e criou uma editora, em 1994.
“Nesse momento, eu já tinha dois romances escritos que levava para um lado e outro sem conseguir publicar. Em menos de quatro anos, nossa editora publicou mais livros que o país em 20 anos de pós-independência e isso conseguimos porque adotamos, entre outras medidas, ‘banalizar’ o livro em sentido positivo, já que o livro não tem que estar distante, como coisa de outro mundo”.
O segundo aspecto mencionado por Sila foi usar as gráficas do próprio país e não fazer a impressão em nação estrangeira e o terceiro foi promover jovens talentos. Ele lembra que despois que publicou um romance escrito por dois jovens, em 2013, mais pessoas foram estimuladas a escrever.
Língua e escrita
Pergunto a Sila sobre a escolha da língua na hora de escrever, lembrando que a maioria da população do país (1,8 milhão) é falante de crioulo. Depois desta, as línguas mais usadas pela população guineense são manjaco, fula, mandinga, balanta e papel.
“Os meus romances e peças teatrais estão escritas em português, mas tenho algo escrito em crioulo. Como editor que sou, tenho uma coleção de livros em crioulo. No futuro, há todo um caminho que se precisa fazer para promover a identidade e afirmação do guineense. Não significa excluir o português, negar a modernidade ou tudo aquilo que as pessoas pretendem vender, é ser ‘Eu’ e no meu ‘Eu’ está o crioulo também!”
Esta entrevista foi realizada em Bissau no ano de 2016 – Para acompanhar o trabalho da fotógrafa Virginia Yunes, clique aqui