Como a afrocentricidade pode contribuir para a memória do negro

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Foto de Virginia Maria Yunes – Divulgação Por dentro da África

Carlos Augusto França Ferreira*, Por dentro da África

O racismo à brasileira é, sem dúvidas, um dos mais sofisticados do mundo. De acordo com estudiosos como Munanga (1986) e Moore (2007), a segregação com base em raça, amplamente enraizada em políticas públicas, pode ser considerada um crime perfeito, muitas vezes, praticado de forma velada, e, em outras, de forma muito direta e definitiva, como nos casos de homicídios promovidos por aparatos policiais totalmente despreparados, dissimulados e criados em meio aos signos herdados dos poderes eurocêntricos  presentes em todo o processo histórico nacional. Em resumo, existe uma configuração de relações de poderes déspotas que pode ser entendida de maneira categórica: o tolhimento de direitos fundamentais e a manutenção do status quo de determinado grupo étnico são os maiores objetivos. Esta breve introdução pode ser considerada como o primeiro ponto desta reflexão.

Um dos espaços de maior impacto para a manutenção desta estrutura são os centros acadêmicos, geralmente eurocêntricos, e paupérrimos em pluralidade filosófica. Existe uma elite intelectual responsável pela produção científica maquinando com o intuito de manter ideologias hegemônicas. Neste momento é pertinente referenciar intelectuais que se destacam no cenário nacional devido ao antagonismo e fomento à emancipação e construção de um currículo realmente democrático para o ensino básico e/ou superior. Pensadoras como Nilma Lino Gomes (2017) e Lelia Gonzalez (2018), responsáveis por produções anti-hegemônicas, se destacam pelo esforço em democratizar e dar novos ares às instituições de ensino brasileiras.

Para uma melhor análise do contexto abordado, o emprego de produções africanas e diaspóricas servirão como base para novos entendimentos e diretrizes, pois esta demanda deixou de atender apenas o Movimento Social Negro. Sabemos que o racismo é um problema de todos os brasileiros.

Em um segundo momento, torna-se concebível a proposta de trazer à baila alguns trechos de canções do Rap Nacional; tal movimento oriundo de vários desdobramentos insurgentes africanos pode oferecer arcabouço de grande valia para um melhor entendimento do que vem a ser denominado afrocentricidade. Esta que será explicada adiante, com minuciosidade oportuna.

A afrocentricidade é uma proposta epistemológica baseada em um amplo conjunto de signos africanos oriundos da África pré-colonial e de emblemas insurgentes dos períodos de resistência contra a invasão e destruição promovidas pela colonização iniciada pelos árabes e europeus a partir do oitavo século da era cristã, até o final do décimo quinto século desta era; ambos os processos ainda provocam reflexos destrutivos às populações africanas.

Tal complexo filosófico foi proposto em 1980 pelo professor Kete Molefi Asante, idealizador do primeiro programa de pós-graduação em estudos africanos dos Estados Unidos, na Universidade Temple. Inicialmente, reuniu fatos históricos e experiências de dirigentes, ativistas e outros integrantes do Movimento Social Negro a fim de condensá-las em práxis para a contemporaneidade e as necessidades de jovens negros que necessitavam de uma nova arquitetura para métodos de análise científica e para edificação e retomada da humanidade da sociedade marginalizada pelo eurocentrismo.

É importante salientar que suas raízes mais densas e profundas estão localizadas na ação pan-africanista que tem o Caribe como seu nascedouro, em meados do décimo nono século da era cristã; além da nítida inspiração de teorias e ativismo social pelos direitos civis estadunidenses dos anos de 1960. Generosamente, conta com vasta contribuição de diversos autores e muitos ativistas como “Marcus Garvey, W.E.B. Dubois, Anna Julia Cooper, Cheikh Anta Diop, Frantz Fanon, Kwame Nkrumah, Malcoln X, Amilcar Cabral, Walter Rodney, Ella Baker e Maulana Karenga” (Rabaka, 2009, p. 131), entre outros. Contudo, foi Asante que trabalhou em uma sistematização teórica para sintetizar a afrocentricidade.

Os pesquisadores contemplados pela afrocentricidade acreditam no conceito de raça como uma construção histórica e social. Em concordância, partem do pressuposto que analisa a presença de elementos africanos junto aos símbolos elaborados durante o processo histórico do mundo Ocidental; considera a cultura, filosofia e conhecimentos científicos dos inúmeros contextos africanos.

A crítica afrocentrada verifica que, em grande parte, o Ocidente postula como conhecimento um conjunto de crenças que sofrem distorções oriundas do etnocentrismo ocidental. O pensamento afrocêntrico investiga e propõe novas formas de articular o estudo, a pesquisa e o conhecimento nesse campo. (NASCIMENTO, 2009. p. 30).

Após esta rápida construção, fica, aqui, o destaque de trechos de duas canções: África Tática, sob desenvolvimento do rapper GOG em parceria com a cantora Ellen Oléria e Sou Função, sob interpretação do grupo de rap Racionais Mc´s; assim, são apresentadas:

África Tática, fala franca, força tática/ Reza forte, falência da gramática
estática/ A mente divergente nascente da contracorrente/ Aperta, liberta,
dispara o sinal de alerta/ O Egito desperta/ (…) Eu, mulher negra, pedra fundamental da raça humana/ Guardiã da consciência soberana, sou africana (…) Quanto mais perto estamos, laços novos apertamos/ Não fuja, não corra, não se entregue, não sofra/Rebeldia e revolta, pra nós, é retorno, é Sankofa (…)/ A vida segue: o futuro renova, o passado ensina/ Vontade, verdade, exemplo, estima (…)/ Eu, homem negro, filho de nossa mãe/ Herdeiro primeiro do genoma humano /Sou soberano, sou africano/

E:

Sô função, pra quem não tá ligado me apresento/ e as ruas represento/
(…) Esse som é do bom, dá uns dois e viaja/ Nós somos negros não importa o que haja/ O ritmo é nosso trazido de lá/ (…) O fascínio não morre ele só começo/ Das festa de preto que os boy não
colô/ (…) Paguei pra entrar e nunca mais vou sair/ (…) Eu sô raiz mais cadê você/A função e o funk jamais vão morrer/ (…) O rap me ensinou a ser quem eu sô/ E honra minha raça pelo preço que
for/ Dos vida loka da história eu sô um a mais/ (…) Sô pelos função e a função é por mim/ Até o fim, “plim”, nossa luz
contagia/ (…) Eis que um belo dia alguém mostrou pra mim/ Uma reunião tribal, James Brown e Al Green , uau “sex Machine“/O orgulho brotou,
poder para o povo preto, que estale os tambor/
(…) Às seis mil ano até pra plantar/ Os pretos dança todo mundo igual
sem errar/ (…) Sô função/

Os trechos de canções apresentados, se analisados pela afrocentricidade, exprimem a importância de se existir um olhar independente e rigoroso em métodos para investigar a experiência africana na construção da civilização; esta é a proposta da afrocentricidade, que em uma definição ainda mais simples, seria uma ferramenta criada por africanos para explicar suas próprias ações e concepções dentro da história da humanidade; esta episteme é, desta forma, uma resposta contundente ao eurocentrismo, este que se cristalizou em todos os níveis de relações, sejam amorosas, profissionais, acadêmicas, etc.; isto vale até mesmo para movimentos ditos progressistas que surgiram no seio das lutas anticoloniais, corroborando os dizeres de Frantz Fanon em “Os Condenados da Terra” (2015).

Após isto, cabe dizer que esta proposta epistemológica é um modo de pensamento e ação no qual a centralidade dos interesses, valores e perspectivas africanos predominam. Em termos teóricos, é colocar o povo africano no centro de qualquer análise de fenômenos africanos; seja na diáspora ou no continente africano.

Em suma, ao invés de oferecer uma direção norteadora – caracterizando o hemisfério norte como fonte filosófica universal; para negros, a afrocentricidade oferece uma matriz filosófica localizada ao “sul” – possibilidade filosófica oriunda do berço meridional – portanto, africano (Diop, 2012); de outro modo: não há norteamento, há suleamento, testificando a aula da professora Katiúscia Ribeiro, ministrada no Cefet/RJ no dia 5 de setembro de 2017.

Em outros termos, a construção “afrocentrada” diz respeito às perspectivas de localização dentro de suas próprias referências históricas e culturais, sem nenhum desmerecimento às outras. Mas, evitando a marginalização ou invisibilização de sua própria trajetória histórica e cultural e, por conseguinte, todas as consequências negativas de não se reconhecer, no projeto civilizatório e de produção de saberes ao longo da história.

Desta forma, o objetivo deste artigo pode ser dividido da seguinte maneira:

1 – Oferecer possibilidades para o negro revisitar pontos da história e recontá-los a partir de suas fontes intelectuais e científicas;

2 – Resgatar os pontos históricos que embasam a origem da civilização africana;

3 – Iniciar uma reflexão sobre a importância da memória africana atrelando-a a uma educação democrática;

4 – Explicar qual o papel do eurocentrismo na construção de calendários e linhas-do-tempo.

O tempo ocidental e o tempo africano

O conceito de tempo, para a civilização africana, é diferente do que é posto pela filosofia ocidental. O processo de edificação das civilizações africanas ocorreu em um ambiente diferente, quando comparado com ambientes rigorosos encontrados no hemisfério norte, ou seja, em sociedades europeias.

Esta diferença considerável foi responsável pela criação de produtos filosóficos adequados ao surgimento de sociedades sedentárias e a criação de métodos e tecnologias para modificar ambientes tropicais e abundantes em recursos naturais como a água e solo fértil, presentes em grande parte do continente africano. Surge daí o conceito de sociedade matriarcal e coletiva com forte apreço aos frutos da terra e aos acontecimentos fisiológicos responsáveis pelo nascimento de novas vidas humanas.

A sociedade, em grande parte, era gerida por mulheres que desenvolviam métodos de agricultura e eram vistas como nutridoras em uma complexa cosmovisão; aqui, pode-se avistar os primeiros impedimentos para que boa parte dos brasileiros não entendam por qual motivo suas histórias não se enquadram nos preceitos do tempo e cultura europeus; estes, que foram construídos em ambientes austeros, com escassez de recursos naturais, solo infértil, períodos curtos propensos à caça e grande competição entre pessoas, fizeram surgir, assim, as sociedades patriarcais, com forte apego aos bens materiais, xenófobas, preocupadas com o controle de natalidade e forte desejo de controlar o sexo feminino (machismo); estes elementos foram trazidos mais tarde às Américas, pelo colonialismo ibérico, em primeiro momento, e por outras culturas europeias ao longo de séculos.

É por isto que os conceitos edificantes da sociedade colonial, em grande parte predatórios, não coadunam com os preceitos da sociedade vítima do colonialismo, que foi concebida de acordo com os fenômenos ambientais mais brandos e propícios à vida em comunidade; algo muito presente nos elementos culturais de boa parte da comunidade negra.

É por isto que boa parte das instituições brasileiras não sensibilizam parte importante da população, que tem, em sua matriz cultural, signos bem diferentes dos que são oferecidos em processos educativos. O grande número de evasões escolares, frequência de patologias específicas entre negros, falta de acesso à tecnologia, entre outras coisas, talvez sejam resultados desta discrepância entre valores reais encontrados em comunidades e valores virtuais que funcionam apenas em ambientes hegemônicos.

Existem dois Brasis: o primeiro é feito pelos dirigentes herdeiros dos processos coloniais; o segundo é ignorado e marginalizado. Pode-se dizer, então, que existem duas linhas-de-tempo para explicar os mecanismos da sociedade brasileira.

Escravidão no Brasil – Gravura de Jean-Baptiste Debret

Em conclusão, pode-se dizer que o conceito de tempo para as sociedades meridionais (africanas) e setentrionais (europeias) e suas implicações são totalmente antagônicas. Enquanto as sociedades ocidentais valorizam o tempo a partir do futuro e buscam o desenvolvimento na construção de um futuro sempre superior ao presente, e enxergam o passado como um lugar menos apreciável, para a civilização africana o passado tem papel crucial. “Se nas sociedades modernas o tempo é orientado para o futuro, nas sociedades tradicionais o tempo é orientado para o passado. É esse precisamente o caso das sociedades africanas” (Oliveira, 2006, p.48).

Por isto, soluções para o presente se encontram na ancestralidade. Na prática, a criação de uma temporalidade afrocentrada não deve estar dedicada à busca de um passado idealizado, nem de uma África romantizada; contudo, se trata de aprender e criar soluções a partir de conhecimentos anteriores, com as gerações antigas, e entender que o presente só é possível por conta de um passado existente.

Assim, uma linha-de-tempo é, em síntese, a possibilidade de se localizar importantes eventos históricos e refletir sobre o papel das pessoas na manutenção de sociedades inteiras. Isto é, ter domínio razoável sobre os pilares históricos que possibilitam a autonomia e quais caminhos podem e devem ser seguidos.

Cabe dizer, agora, que um dos artifícios mais eficazes no processo de destruição dos povos pretos foi deturpar sua capacidade de se localizar em seu próprio tempo. Por esses motivos, o processo de colonização exibiu esforços generosos nos processos de deterioração da espiritualidade e história africanas durante as longas empreitadas da máquina eurocêntrica. A estratégia foi destruir o poder africano de auto localização e construção de sua linha-de-tempo na existência. E assim, como resultado, obtiveram boa parte do que desejaram.

Walter Rodney (1975) e Chancellor Willians (1987) explicam detalhadamente este ponto da história nas obras “Como a Europa subdesenvolveu a África” e “A destruição da civilização preta”, respectivamente.

Há relevância em ressaltar que as inúmeras tentativas de destruição do tempo africano tradicional não se concretizaram; a espiritualidade e o tempo africanos se reinventaram: pode-se citar o Candomblé e o Vodum, ambos responsáveis por inúmeras insurgências e criações de estados africanos independentes por todas as Américas ao longo dos últimos séculos.

Em suma, a inauguração do tráfico árabe no oitavo século da era cristã e a existência do colonizador/traficante europeu dos últimos séculos desta era, não conseguiram destruir a capacidade do negro se localizar no tempo.  Consequentemente, pode-se sugerir que os objetivos das canções anteriormente citadas se mostram na tentativa de criar elos entre essas heranças civilizatórias africanas e a contemporaneidade, fortemente irrigada por lutas coletivas.

Este é o tempo africano se reinventando. É o que o rapper Mano Brown diz em um breve trecho da canção Capítulo 4, Versículo 3: “a fúria negra ressuscita outra vez”

O que é yurugu? Onde ele está? 

Um Ser na cosmovisão Dogon, povo que habita as regiões do platô central do Mali, na África Ocidental, ao sul da curva do Níger, nos arredores de Bandiagara e no Burquina Fasso; responsável pela desordem no universo. Este é um ser concebido em negação à ordem natural, que então age para iniciar e promover a desarmonia no universo.

Mas, em Cosmologia Africana, esse é um ser deficiente em sensibilidade espiritual, está perpetuamente em conflito, é limitado, e está ameaçando o bem-estar da humanidade: este é o Yurugu, o destruidor de civilizações.

Categoricamente, as canções anteriormente citadas percorrem os mesmos caminhos propostos por Marimba Ani (1994): o Yurugu, dentro de uma perspectiva filosófica, pode muito bem ser visto como o colonizador destruidor do tempo africano. Tal analogia é cabível para este, que agora gesta o poder capitalista e ainda subdesenvolve todo o mundo em detrimento de suas vontades, impedindo que a consciência negra floresça com maior velocidade; isto também é o que Cheikh Anta Diop chama de Renascimento Africano.

Mais uma vez, a Afrocentricidade tem sugestões a fazer. Esta retomada de consciência, portanto, de humanidade, se mostrou como um movimento constante entre africanos em todo o mundo. O Rap, em sua essência, é um desdobramento deste renascimento e pode ser usado no redirecionamento do tempo africano.

Para isto, o Yurugu de todos os espaços intelectuais deve ser combatido, seja nos ambientes de formação de profissionais de educação, de criação de tecnologias, etc. Este desafio de descolonização do saber é um dos grandes desafios da contemporaneidade, como bem coloca a professora Nilma Lino Gomes (2017) em “O movimento negro educador”.

A realocação de nossas histórias

Entre 1983 e 1987, o professor Abdias do Nascimento, naquele momento deputado federal, ofereceu passos importantes para a construção de um calendário e uma linha-de-tempo voltados aos negros. Sugeriu a criação de vários dispositivos políticos para o que podemos chamar de insurgência epistemológica africana:  reparações históricas aos povos africanos do Brasil através de políticas afirmativas e a criação do dia da Consciência Negra, o 20 de novembro, que se transformou em feriado nacional no início dos anos 2000, sob a ávida bandeira da luta do Movimento Social Negro, tendo Zumbi dos Palmares como um dos principais signos de resistência e proteção do tempo africano em terras brasileiras.

A partir deste marco histórico, o Movimento Social Negro conquistou inúmeras vitórias que se materializaram em modificações de códigos legais.

A criação da lei 10.639, em 2003, deu novo folego à luta antirracista e ampliou o entendimento do que é reivindicado há décadas. Com a motivação de atender a esta nova demanda, a formação de pesquisadores e pensadores negros ganhou mais aliados, pois a obrigatoriedade do ensino de suas histórias e culturas abriu caminho para uma revolução epistemológica em todas as áreas do conhecimento.

Por fim, cabe dizer que todo o processo de realocação do tempo e história africanos sensibilizará de forma importante futuras políticas de reparação, que, por conseguinte, são responsáveis pela desestruturação do eurocentrismo. A relação entre políticas afirmativas e a implementação do art. 26 A na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, através da lei 10.639/03, criou nova atmosfera acadêmica, onde outrora somente a história ocidental era contemplada, numa tentativa de criação de uma identidade nacional surreal e, até mesmo, cômica, pois como seria possível falar de identidade nacional sem referências africanas ou nativas americanas?

Por isto, as múltiplas identidades africanas e indígenas, estas contempladas em 2008, com a lei 11.645, passaram a oferecer novas possibilidades teóricas às análises que envolvem relações étnico-raciais.

PRÁXIS PARA A CRIAÇÃO DE NOVA LINHA DE MEMÓRIA COM BASE AFRICANA

A memória do negro brasileiro vem sendo agredida sistematicamente pela estrutura de poder e dominação há séculos criada pelo eurocentrismo. Isto também ocorre com a memória do negro africano, igualmente vitimado pelas distorções impostas em suas capacidades de entender suas linhas-de-tempo e memórias. E, muito ao contrário do que alguns historiadores sugerem, o tempo do negro não se iniciou com a chegada do europeu ao continente africano, no final do décimo quinto século da era cristã; muito menos com a escravização de milhões de africanos deportados ao mundo ocidental.

Os primeiros registros da civilização africana podem ser vistos em artefatos arqueológicos como ferramentas de ossos e lâminas encontrados nas Áfricas meridional e oriental,  construídos entre 90.000 e 60.000 anos; ainda daquela época, colares com cerca de 70.000 anos foram encontrados na África do Sul e o famoso osso de Ishango, com idade entre 20.000 e 18.000 anos, descoberto no interior do Congo, em 1960. O primeiro sistema alfabético a ser criado para registrar a memória africana, pode ser encontrado na civilização kemética (egípcia): os chamados hieróglifos.

Outra grande contribuição para a memória e linha-de-tempo africanas são os Adinkras, um sistema de conceitos e axiomas carregados de significados que denotam o surgimento dos Akan, uma sociedade presente até hoje na África Ocidental.

Para a afrocentricidade, estas experiências históricas gravadas em artefatos arqueológicos, cosmovisões e outras ferramentas, podem ser a essência para reformulações e criações que vão ao encontro de um alicerce preparado para editar marcos no tempo do negro da contemporaneidade.

Novos calendários podem ser criados a partir de experiências, até então desconhecidas por crianças, jovens e adultos. Estas criações podem permear processos de ensino e aprendizagem em escolas, incentivar a criação de eventos em agremiações e núcleos de militância, endossar festejos familiares, permear sistemas de comunicação e expressão subsidiados pelas avançadas TDICs, (tecnologias digitais de informação e comunicação), etc.

ABC da re(construção) da memória e do tempo africanos 

De acordo com a trajetória seguida até aqui, parece plausível sugerir uma síntese num formato “ABC”, para a (re)construção do tempo e memória africanos:

  1. a) O combate ao autoritarismo do eurocentrismo deve ser constante. Não é cabível que uma sociedade seja subjugada por um pequeno grupo de pessoas, que mantém o poder a qualquer custo. Resgatar o poder de contar a história a partir de um calendário próprio pode ser uma alternativa.
  2. b) Os povos Bantu foram os primeiros povos africanos escravizados que chegaram ao Brasil; visitar os signos das culturas Bantu pode ser um grande início para novas datas comemorativas em ambientes escolares, agremiações, festividades familiares etc.
  3. c) O povo Ewe ou Gegê, também foi escravizado e trazido ao Brasil. Visitar o tempo e memória dessas pessoas é crucial para o negro no Brasil.
  4. d) Conhecer o Kimbundu, uma língua bantu que exerce forte influência na construção da língua portuguesa brasileira.
  5. e) A afrocentricidade sugere que toda e qualquer luta insurgente seja feita a partir de práxis afrodescendentes. A força política de signos negros é o que pode romper paradigmas eurocêntricos.
  6. f) Determinar pontos políticos de curto, médio e longo prazos; o tempo também pode ser um aliado na hora de participar de processos democráticos.
  7. g) Oferecer formação para todos os quadros da sociedade negra. O tempo em uníssono é mais eficiente.
  8. h) Manter contato com instituições negras em esferas municipais, estaduais e internacionais, para criar mais possibilidades e conhecer outros calendários negros.
  9. i) A construção de linhas-de-tempo negras não deve ser feita por pessoas que não tenham alinhamento com a causa.

Semana da Memória Negra 

Esta semana pode ser proposta pela necessidade do negro de recuperar memórias através de festividades, reuniões e outras atividades direcionadas ao processo de ressignificação da noção de tempo e espaço.

Para que esta semana seja realizada, deve-se existir total foco e iluminação aos sucessos protagonizados por africanos retirados, sob extrema violência, de suas terras e trazidos para as Américas em tumbeiros.

Estes, devem ser celebrados e homenageados e contados com todas as informações possíveis. Isto pode injetar energias positivas nos ânimos dos mais jovens e revigorar os mais velhos que, incessantemente, lutaram com os meios necessários e existentes, para que o tempo africano não fosse destruído. Além disso, esta semana deve aliar pesquisa rigorosa, críticas e reflexões de todos os participantes, de maneira horizontal.

Por fim, cabe salientar que estas ações vão ao encontro do que Asante chama de consciência de vitória que, resumidamente, pode ser entendida como um conjunto de práticas que vão além do apontamento do racismo na sociedade. O autor sugere que todas as ações se movam para além dos apontamentos e se tornem ações práticas e síntese de soluções de curto, médio e longo prazos.

Referências

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DIOP, Cheikh Anta. Naciones negras y cultura. Barcelona: Edicions Bellaterra, 2012.

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2015

GARVEY, Marcus Mosiah. Procure por mim na tempestade. São Paulo: 2017.

GOMES, Nilma Lino. O movimento negro educador. Petrópolis: Editora Vozes, 2017.

GONZALEZ, Lélia. Primavera para as rosas negras. Diáspora Africana: Sankofa, 2018.

MACHADO, Carlos Eduardo Dias. Gênios da humanidade – ciência, tecnologia e inovação africana e afrodescendente. São Paulo: Editora DBA, 2017.

MOORE, Carlos. Racismo e sociedade. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007.

MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. São Paulo: Editora Ática, 1986.

NASCIMENTO, Elisa Larkin. Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro Edições, 2009.

NOGUEIRA, Renato dos Santos Junior. Afrocentricidade e educação: os princípios gerais para um currículo afrocentrado. In: Revista África e Africanidades – Ano 3 – n. 11, novembro, 2010.

OLIVEIRA, Eduardo. Cosmovisão africana no Brasil: elementos para uma filosofia afrodescendente. Curitiba: Editora Gráfica Popular, 2006.

RIBEIRO, Katiúscia. Filosofia Africana. 2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=EdYSCzpA8kg. Acesso em: 17 de jul. 2019.

RODNEY, Walter. Como a Europa subdesenvolveu a África. Lisboa:  Seara Nova, 1975.

WILLIAMS, Chancellor. The destruction of black cilization: great issues of a race from 45000 b.c. to 2000 a.d.. Chicago: Third World Press, 1987.

Carlos Augusto França Ferreira é Licenciado em Educação Física, Especialista em Educação e Tecnologias: Recursos de Mídias na Educação e Membro pesquisador do Núcleo de Cultura Afro-Brasileira – NUCAB – da Universidade de Sorocaba – UNISO.