O boicote das nações africanas às eliminatórias da Copa do Mundo de 1966 serviu para que o continente conquistasse uma vaga direta no torneio a partir de 1970. Mas a primeira participação da África no mundial veio bem antes: na Itália, em 1934.
Na ocasião, o Egito, cuja federação foi fundada em 1921 e filiada à FIFA desde 1923, foi responsável pela única participação do continente na competição em seus primeiros 40 anos de existência.
Antecedentes
O Egito não chegou a disputar a primeira Copa do Mundo, em 1930, realizada no Uruguai. Algumas fontes indicam que o país teria sido um dos convidados, mas a federação acabou desistindo de participar.
Por outro lado, o Egito já havia participado da modalidade em três Olimpíadas – à época, consideradas tão ou mais importantes que as próprias Copas.
Na Antuérpia-1920, disputou uma única partida, perdendo para a Itália por 2 x 1, o que lhe rendeu uma eliminação. Curiosamente, a equipe marcou um amistoso na região, contra a Iugoslávia, outro participante derrotado precocemente no torneio. Desta vez, vitória egípcia por 4 x 2 – apesar de o jogo não valer nada.
Em Paris-1924, os resultados foram mais felizes. Sem precisar disputar a 1ª fase, os africanos estrearam diante da Hungria, que havia vencido a Polônia por 5 x 0 dias antes.
O Egito saiu à frente, e quase sofreu o empate ainda no primeiro tempo, quando o capitão húngaro Joszef Braun-Barna errou um pênalti. A equipe ainda marcou mais dois gols, fechando o placar em 3 x 0.
Na segunda partida, porém, os egípcios não foram capazes de parar a Suécia de Sven Rydell, histórico atacante que foi, por décadas, o maior goleador da seleção de seu país (conseguiu ser superado por Ibrahimovic há poucos anos). Goleada por 5 x 0.
Há uma discrepância quanto à data, mas a seleção do Egito também enfrentou a Lituânia àquela época, vencendo por 10 x 0. Vale ressaltar que a Suíça já os havia derrotado por 9 x 0 pouco antes, em jogo oficial pela competição.
Na Olimpíada de Amsterdã-1928, nova progressão. Desta vez, a equipe conseguiu vencer duas partidas e alcançou a semifinal. Goleada por 7 x 1 sobre a Turquia e vitória por 2 x 1 sobre Portugal.
Apesar de ter chegado longe, a equipe estava muito atrás em qualidade em relação aos outros semifinalistas: Uruguai (maior seleção do mundo à época), Argentina e Itália.
Após derrota por 6 x 0 diante dos argentinos, veio a disputa do bronze contra a Itália. 11 x 3 para os europeus.
Caminho para a Itália-1934
Nas eliminatórias, o Egito precisou enfrentar o selecionado do Mandato Britânico da Palestina – região que era administrada pelo Reino Unido entre o período da 1ª Guerra Mundial e a fundação do estado de Israel.
Apesar do nome, não devemos confundir com a visão atual que temos da Palestina – o território incluía praticamente tudo o que hoje conhecemos como Israel. Os jogadores, por exemplo, eram em sua maioria judeus ou descendentes de britânicos.
Vale ressaltar que, inicialmente, havia a previsão de que as equipes enfrentassem a Turquia, o que acabou não ocorrendo devido à sua desistência.
No jogo de ida, no Cairo, vitória egípcia por 7 x 1. Na segunda partida, disputada em Tel-Aviv, os visitantes construíram o placar ainda no primeiro tempo, e um gol de honra na etapa complementar deu números finais à partida: 4 x 1.
O grande destaque da classificação egípcia ao torneio foi Mahmoud Moukhtar El Tetsh. À época, atuando pelo Al Ahly, o jogador fez três gols na primeira partida e dois na segunda. Na Olimpíada de seis anos antes, já havia chamado atenção ao marcar três na Turquia e um gol decisivo diante de Portugal.
Nascido em 1907, El Tetsh morreu em 1965, consagrado como ídolo do Al Ahly na primeira metade do século XIX. Hoje é conhecido por dar nome ao estádio do clube, o mais vitorioso da África.
Copa de 1934 – Egito x Hungria
A delegação egípcia passou quatro dias em um navio – chamado O Helwan – para chegar em solo europeu. O técnico era o escocês James McCrae.
O primeiro jogo egípcio em uma Copa do Mundo foi disputado na cidade de Nápoles, na Itália governada por Benito Mussolini. Cerca de 9 mil pessoas foram ao estádio Giorgio Ascarelli às 16h30 para assistir ao jogo disputado em 27 de maio daquele ano – um domingo.
Em entrevista ao jornal Al Hayat, em 1998, o goleiro egípcio daquela Copa, Mustafa Kamel Mansour, dava detalhes de como o time encarou a competição:
“Eu tive a honra de jogar naquela histórica partida, mas na época nós não percebemos o quão importante ela era, nós tratamos como se fosse outro jogo qualquer. A Copa do Mundo não tinha a importância que ganharia posteriormente, mesmo na imprensa italiana daquele tempo”
Já haviam se passado 10 anos desde a vitória egípcia por 3 x 0. Mais recentemente, em fevereiro de 1932, as duas equipes tinham se enfrentado em amistoso, empatado em 0 x 0.
Teleki abriu o placar para os húngaros aos 11’, e Toldi ampliou aos 31’. 2 x 0.
Uma reação egípcia, porém, estava por vir, pelos pés do inspirado atacante Fawzi, disposto a fazer história. Oito minutos foram necessários para que ele descontasse e empatasse a partida, aos 35’ e aos 39’.
Com este placar, houve um lance controverso, que só pode ser relembrado por meio de relatos: Fawzi teria marcado o gol da virada, que foi anulado pelo árbitro italiano Rinaldo Barlassina.
“Nós éramos o melhor time, merecíamos vencer. […] Quando o jogo estava 2 a 2, meu colega Fawzi pegou a bola no centro e driblou todos os jogadores húngaros para marcar o terceiro gol. Mas o árbitro cancelou o gol, marcando impedimento!”, contou Mansour à BBC, em entrevista dada em 2002, semanas antes de sua morte, aos 89 anos.
A igualdade não permaneceu no placar por muito tempo. Os húngaros marcaram o terceiro com Vince, aos 8’ do segundo tempo. O placar foi fechado aos 16’, graças a outro gol de Toldi – não sem gerar mais reclamações por parte do goleiro.
“O quarto gol dos húngaros surgiu através de uma grave falta contra mim. Peguei a bola de um cruzamento, mas o atacante deles atingiu meu peito com o joelho. Em vez de penalizar os húngaros com a falta, o juíz italiano deu o gol, em meio às vaias do público.”
O trio de arbitragem escalado para aquele jogo era italiano: além de Rinaldo Barlassina, os auxiliares Generoso Dattilo e Otello Sassi.
“Todos os jornais italianos criticaram seu juiz no dia seguinte e admitiram que ele deu aos húngaros a passagem para a fase seguinte”, prosseguiu o inconformado Mansour.
Numa época em que as transações internacionais estavam longe de serem comuns como hoje, três atletas egípcios que disputaram o mundial foram jogar no futebol europeu nos anos seguintes: o próprio goleiro Mansour, no Queens Park, e Mohamed Latif, no Rangers, ambos da Escócia, além de Ismail Rafaat, no Sochaux, da França.
O retorno
Mesmo tendo sido a pioneira seleção africana a desbravar a Copa do Mundo, os egípcios só retornariam à competição muitas décadas depois, em 1990, que, curiosamente, também foi disputada na Itália.
No jogo de estreia, bom empate diante da Holanda, por 1 x 1. Novo empate por 0 x 0 contra a Irlanda e, em sua despedida, com chances de classificação à fase seguinte, derrota por apenas 1 x 0 para a Inglaterra.
Por outro lado, a equipe continuou se classificando para a disputa de todas as Olimpíadas até a edição de 1956-Melbourne.
A partir de então, a equipe criou uma hegemonia em conquistas africanas, com sete títulos da Copa Africana de Nações, tornando-se o país mais poderoso no continente, sem contar os inúmeros títulos internacionais conquistados por clubes como o Al Ahly e o Zamalek.
Rússia-2018
De volta ao mundial após 28 anos, a expectativa é boa para o Egito. Além de contar com o astro Mohammed Salah, que tem quebrado recordes de gols no campeonato inglês, onde joga pelo Liverpool, a equipe está no grupo mais acessível do torneio, ao lado de Arábia Saudita, Rússia e Uruguai.
Passar de fase é uma possibilidade bastante real. Porém, é provável que, caso isso ocorra, encare logo nas oitavas Espanha ou Portugal, duas favoritas a irem longe.
De qualquer forma, conquistar a primeira vitória após 84 anos de espera já teria um valor histórico inestimável aos egípcios.