Por Ademir Barros dos Santos, Por dentro da África
Há quem diga, cheio de convicção: – Os primeiros a atravessar o Atlântico em direção às Américas, eram mandingas, africanos do Mali. Dizem mais: que foram os mandingas que formaram o primeiro povo não americano a se estabelecer nas Américas; isto, apesar de nunca ter sido encontrada, neste lado do Atlântico, qualquer evidência desta afirmação.
Mas, se assim é, porque alguém sustentaria tal discurso? Com base em quê? Talvez afirmações soltas, partindo de algum africanista doido? Apenas isto? Será? Não! Al-Umari, historiador e viajante árabe da Idade Média, afirma que, em sua estada no Egito, ouviu a seguinte estória, que havia sido ali contada por Mansa Musa, então senhor do Mali:
O governante que me precedeu não acreditava que era impossível alcançar a extremidade do oceano que circunda a Terra, e queria chegar ao final dele. Assim, equipou duzentos barcos cheios de homens, e muitos outros cheios de água, ouro, e provisões suficientes para vários anos. Então, ordenou ao capitão que não voltasse até que eles chegassem ao outro lado do oceano, ou até que estivessem esgotadas provisões e água.
Mas, apenas um barco retornou. Quando questionado, o capitão deste barco respondeu: “Navegamos por longo período, até que vimos, no meio do oceano, um grande rio que flui de forma maciça. Meu barco foi o último; os outros, que seguiam antes de mim, foram afogados num grande redemoinho, do qual não saíram de novo.
Eu naveguei de volta para escapar da corrente.” Mas, o sultão não se deu por satisfeito: ordenou que se preparasse dois mil barcos para ele e seus homens, e mais mil para a água e provisões. Em seguida, conferiu a regência a mim durante sua ausência, e partiu com seus homens, para nunca mais voltar; nem para dar um sinal de vida.
Assim sendo, há quem acredite que o governante desaparecido, Abu Bakr II, tio-avô de Musa, não retornou porque desembarcou nas Américas, do que não há qualquer prova ou evidência. Mas, há provas suficientes da existência, atuação e pujança daquele que o sucede com o título de Mansa, como eram denominados os reis dos reis do Mali.
Portanto, cabe saber quem foi Mansa Musa.
Segundo consta, Kanku Musa, nome que significa algo em torno de “Moisés, filho de Kanku”, foi o 10º imperador do Mali, sucedendo a larga série de imperadores efêmeros e relativamente fracos. Isto, aproximadamente em 1312, quando tinha algo em torno de 32 anos.
Musa era sobrinho-neto de Sundiata Keita, que havia fundado o Império pouco menos de 80 nos antes. Por muçulmano, embora vinculado ao islamismo com face africana, resolve, em 1324, cumprir um dos cinco pilares de sua religião: a hajj, que determina que o crente adulto e sadio deve visitar Meca pelo menos uma vez na vida.
Isto porque, possivelmente, já os outros quatro pilares – a submissão incondicional a Allah, a esmola dada aos pobres, o jejum durante o Ramadã e as cinco rezas diárias – é de se supor que, certamente, já vinham sendo constantemente executados.
Portanto, é com o intuito de cumprir o pilar que faltava que o Imperador se destina a Meca; e para isto, leva consigo, segundo contam fartas testemunhas da época e historiadores vários, tais como Ibn Batutta, algo, no mínimo, suntuoso:
. 60.000 homens;
. 12.000 servidores, vestindo seda e portando vasos com ouro;
. 80 camelos, carregando entre 50 e 300 quilos de ouro em pó, cada um;
. 500 servas, trazidas por sua esposa sênior, Inari Kunate.
Havia, ainda, incontáveis cavalos, selados ou portando ouro, além de bandeiras e arautos ricamente vestidos, exibindo pompa muito maior que a ostentada por todos os seus antecessores em viagem a Meca.
Esta viagem, segundo ainda historiadores da época, durou, pelo menos, um ano, posto que o Mali alcança o Atlântico, e Meca está na Península Arábica: portanto, foi preciso atravessar toda a África, do ocidente ao oriente, para ir além do Mar Vermelho.
Na passagem Musa, seguindo o rio Níger, visitou diversas cidades importantes: algumas, eram pujantes entrepostos de caravanas e centros de comércio na África Central, para onde a comitiva atraiu comerciantes de tão longe quanto Maiorca e Egito, além de pessoas comuns, incluindo judeus e, logicamente, muçulmanos.
Já no Egito, enviou um presente de 50.000 dinares ao sultão, mesmo antes de decidir-se a permanecer, por lá, por três meses. O sultão, em retorno, lhe emprestou o palácio de verão, certificando-se que sua comitiva fosse muito bem tratada.
Ali no Cairo, assim como durante toda a viagem até a Península, veio ele sempre negociando e doando ouro, em pó ou não, por onde transitava; de tal generosidade, aproveitaram-se os comerciantes egípcios, que passaram a vender seus produtos com algo em torno de 500% de aumento, o que, segundo é contado, desvalorizou de tal forma a moeda egípcia, por conta da inflação assim provocada, que a economia local não conseguiu recuperar-se durante, pelo menos, os próximos vinte anos!
De volta ao Mali, Musa soube que Sagmandia, um de seus generais, havia recuperado a cidade de Gao, que tinha sido centro de império e de comércio; de posse desta notícia, ele resolveu desviar-se da rota original, visitando a cidade reconquistada, onde recebeu, como reféns, os dois filhos do rei de Gao, Ali Kolon e Nar Suleiman. Com eles, retornou à sua capital, passando a educá-los em sua corte.
Aliás, neste retorno, Mansa Musa trouxe, consigo, muitos estudiosos árabes e arquitetos; inclusive o andaluz Abu Es Haq es Saheli, a quem, segundo consta, pagou 200 kg de ouro para construir a suntuosa e imponente mesquita Djinguereber, em Timbuktu!
Portador de tanta pompa, pode-se assumir que Mansa Musa foi responsável, em grande parte, pela expansão do Islã no norte da África Negra, por onde espalhou madrassas, como são chamadas as escolas muçulmanas. Fiel a esta confissão, também trouxe, em seu retorno ao Mali, quatro descendentes do Profeta, para que o país fosse “abençoado por suas pegadas.”
Mas, não só de religião viveu o reinado deste impressionante imperador africano: também a expansão e consolidação do império a ele devem ser creditadas.
Foi por suas mãos, ou melhor, durante seu reinado, que o Mali que, antes, se limitava aos territórios do antigo Império de Gana, à região de Melle e circunvizinhança, também dominou Koumbi Saleh, Djenée, Futa-Djalon e, entre outras cidades, a já mencionada Gao, dando, ao Mali, seu contornos finais. Nestes novos contornos, abarcou o pequeno reino de Kukia que, ironicamente, nunca mais sairia da história do Mali.
Com esta expansão, este impressionante império passou a controlar minas de ouro extensamente produtivas, além de ricas rotas de comércio, que se estendiam do Egito ao Marrocos, o que lhe permitiu forte incremento nos negócios, que envolviam, além do ouro, marfim, sal e produtos diversos.
No auge do poder, o Império continha, pelo menos, 400 cidades, quase todas densamente povoadas. Mansa Musa também investiu fortemente na educação: em seu governo, determinou a construção ou revigorou as universidades de Timbuktu, Sankore, Djenée e Ségou que, atraindo estudiosos de todo o mundo muçulmano e indo muito mais além, espalhou o Islã através dos mercados, fazendo de Timbuktu prestigiada área de pesquisa, estudo e produção acadêmica, para onde afluíram não só doutores da lei islâmica como, também, historiadores, astrônomos, filósofos, matemáticos e intelectuais outros, diversos.
Além disto, também passou a apoiar artistas e eruditos que, atraídos pelo potencial do Império, não demoraram a chegar, estabelecendo-se por lá. A fama do país, ancorada em sua pujança, bem como a de seu governante, assentada em sua generosidade, capacidade administrativa e habilidade econômica, acabou por viajar por todo o Mediterrâneo e sul da Europa, onde comerciantes de centros dinâmicos tais como Gênova, Veneza, Granada, logo acrescentaram Timbuktu a seus mapas de viagem, aí incluindo seus mercados e rotas de comércio, onde trocavam bens por sal, marfim e ouro, entre outras especialidades.
Esta pujança, evidentemente, carreou para o Mali tamanha fortuna que Mansa Musa é, hoje, considerado o homem mais rico que a humanidade já viu: segundo relação elaborada pelo site CelebrityNetworth.com em 2012, que inclui as 25 fortunas então consideradas as maiores de todos os tempos, Musa, em valores atualizados, disporia de algo em torno de US$ 400 bilhões, o que é superior ao dobro da fortuna de Bill Gates, o único listado então sobrevivente entre os 25 que o site relaciona!
Portanto, é um africano, competente administrador público, altamente letrado, mecenas, fortemente religioso, que viveu no séc. XIV e foi imperador do Mali, o detentor da maior fortuna que o mundo já viu!
Este fato contraria, indubitavelmente, todo o discurso de apoio ao escravismo moderno que, um século depois, passou a afirmar que os africanos não tinham instrução ou deus, sendo incapazes de civilizar-se ao largo da tutela europeia, discurso este que, mesmo mais de quinhentos anos depois, ainda encontrou assento na pseudociência sustentada por Lombroso, Nina Rodrigues e tantos outros de seus pares.
Note-se que de tanta riqueza dispunha Musa, que Abrão Cresques, autor do Mapa Catalão de 1375 – portanto, apenas cincoenta anos após a hajj deste Imperador – ali o retratou com uma pepita de ouro nas mãos, um mercador árabe se aproximando montado em um camelo, e a cidade de Timbuktu, então capital do Mali, a seus pés.
Como resultado, talvez não se mostre exagerado imaginar que este mapa tenha levado o Infante D. Henrique a associá-lo ao Preste João, cuja lenda, à época, corria a Europa, afirmando haver um poderoso rei, nas Índias, Arábia ou Etiópia, ao qual o Infante talvez tenha imaginado juntar-se para bloquear o que acreditava ser a fonte de financiamento dos muçulmanos que, então, ocupavam a Península Ibérica; e aos quais o Infante dedicava interminável guerra.
Se assim é, talvez tenha, esta crença, levado o Infante a determinar, em 1436, que seus navegantes cruzassem os cabos Branco e Bojador em direção à África, dando início, por desdobramentos outros, ao lamentável processo que culminou com a implantação do escravismo moderno a vitimar africanos, com efeitos altamente perniciosos sobre sua descendência, que ainda perduram, mais de meio milênio depois.Prosseguindo: o reinado de Mansa Musa durou 25 anos; ao final deste período, ele foi substituído por seu filho Maghan I, que acabou deposto, em meados de 1341, pelo Mansa Suleyman, irmão de Musa.
Era o início da decadência do império que, esgarçando-se em disputas políticas, esfarela-se em pequenos reinos, até ser suplantado pelo Songhai, em 1546.
A ironia final é que o Songhai formou-se a partir do pequeno reino de Kukia, conquistado por Mansa Mansa, conforme acima citado, em 1325, ou seja: no mesmo ano em que voltou de sua portentosa hajj. Qual a ironia? Talvez o Songhai, pouco mais de dois séculos depois de ser conquistado, tenha conseguido se vingar…
REFERÊNCIAS
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