“Os sul-africanos precisam de reconciliação na busca pela igualdade”, diz antropólogo no Dia da Liberdade

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Natalia da Luz, Por dentro da África

Crianças na África do Sul - Khayelitsha - Natalia da Luz
Crianças na África do Sul – Khayelitsha – Natalia da Luz

Cidade do Cabo – Após décadas de um regime segregacionista, os sul-africanos negros conquistaram a cidadania, tornando-se parte do país ao qual pertenciam e que mesmo assim os renegava. Em 1994, eles foram às urnas pela primeira vez, com a esperança de um futuro de igualdade e oportunidade, palavras que eles desconheciam e que passaram a experimentar ao colocar no poder o primeiro presidente negro da África do Sul.

Nelson Mandela não representava apenas a cor deles, mas uma nova era que daria fim à injustiça cometida contra os filhos negros daquela terra. Entretanto, a nação que celebra ainda parece no início de um caminho para libertar a maioria dos negros que ainda vive nas townships (áreas precárias para onde eram levados os negros durante o apartheid) dentro de uma realidade que não condiz com o futuro que eles desejavam.

Francis durante discurso na UCT - Divulgação

– O Dia da Liberdade (celebrado em 27 de abril) é um bom momento para refletir sobre o passado, presente e futuro do país. Há um sentimento de que as coisas mudaram desde o fim do apartheid. Os sul-africanos estão orgulhosos com a nova Constituição que lhes garante liberdade e direitos – disse em entrevista exclusiva ao Por dentro da África o antropólogo Francis Nyamnjoh, vencedor do Prêmio de Herói Africano 2013.

A promessa de 1994 era de uma vida melhor com liberdade para todos da “nação do arco-íris”, apelido dado pelo Arcebispo da Igreja Anglicana e Nobel da Paz Desmond Tutu para definir a diversidade étnica. Parte da promessa foi cumprida oferecendo ao povo o gosto da democracia, mas ainda existe uma evidente falta de igualdade entre os negros e brancos e entre os negros ricos e pobres. Às gerações anteriores foram negadas muitas oportunidades; as mais novas, que crescem nos guetos, parecem viver o mesmo cenário.

Township de Langa - Natalia da Luz
Crianças na África do Sul – Khayelitsha – Natalia da Luz

Para Francis, uma minoria da elite negra ainda continua reproduzindo algumas situações do apartheid sem qualquer gentileza e preocupação com a grande maioria. A economia ainda é dominada pelos brancos, e o BEE (Black Economic Empowerment) reforça o abismo entre os próprios negros. A medida (BEE) foi criada pelo governo em 2001 a fim de obrigar as empresas a inserirem em seu quadro de funcionários negros para pequenos, médios e altos cargos. Essa ação vem fortalecendo e enriquecendo um seleto grupo de novos milionários negros, enquanto a maioria parece esquecida.

– É um poder que faz parte da realidade de poucos. É um conjunto de medidas que beneficia um grupo influente de negros. Desmond Tutu fez várias criticas ao sistema dizendo que a medida é uma piada e que os negros ainda estão nas favelas, nas ruas, sem trabalho e saneamento básico – , comentou o mestre em antropologia pela Universidade de  Yaonde (Camarões).

Dia 27 de abril de 1994: Mandela a caminho da presidência 

Nelson Mandela - Foto: ONUNos primeiros anos da União Sul-Africana (fundada em 1910, sob domínio do Império Britânico), ainda não existia o apartheid, mas os descendentes dos colonos já promulgavam leis para garantir o poder sobre a população negra. Essa fórmula “nazista” foi transformada em lei, e os negros condenados ao afastamento das áreas nobres, aos empregos subalternos, à educação de péssima qualidade. Por outro lado, os brancos gozavam da maior qualidade de vida em todo o mundo

Durante o apartheid, os negros representavam quase 80% dos sul-africanos e eram obrigados a viver em pouco mais de 10% das terras, mais secas e precárias da rica África do Sul. Os antigos lares nos bairros mais centrais foram obrigatoriamente trocados pelas townships. Além disso, os negros só poderiam transitar com um passe (dompas), revogado em 1986. Os que não possuíam o documento estavam sujeitos à prisão imediata.

Resquício do apartheid na Cidade do Cabo Na saúde, quando precisavam de atendimento médico, brancos eram atendidos em hospitais com padrão europeu, enquanto negros sofriam com falta de recursos. Na educação, a criança negra custava ao governo um décimo da branca e, mais tarde, nas universidades, o espaço novamente era dos brancos. No transporte, ônibus para negros e brancos paravam em pontos diferentes, os trens lotados e mal-acabados eram dos negros. No entretenimento, as melhores praias, piscinas públicas, cinemas, restaurantes e bibliotecas ficavam com os brancos…

Luta contra a desigualdade 

Khayelitsha - township na Cidade do Cabo - Natalia da Luz
Crianças na África do Sul – Khayelitsha – Natalia da Luz

De acordo com o último censo de 2011, cerca de 80% da população (51 milhões de sul-africanos) são negros, 9% mestiços ou coloureds, 8,9 % brancos e 2 % asiáticos. Oficialmente, o desemprego atinge cerca de  25% da população ativa, mas informalmente, o número pode chegar a 40%. No período pós-democracia houve uma esperança da redução da desigualdade e da pobreza, um legado duradouro do apartheid.

– Apesar de muito ter sido feito pela minoria, ainda é preciso fazer pela maioria, porque o país deve ser para a maioria. Grande parte ainda continua vivendo em assentamentos informais, sem condições básicas de vida e na linha da pobreza – explicou o especialista, completando que, diante desse cenário, negros e brancos são como estranhos uns aos outros.

Tensão nas relações políticas 

Julius Malema - Foto: SABCFigura polêmica, o ex-presidente da Juventude do ANC (Congresso Nacional Africano) Julius Malema foi flagrado várias vezes proferindo discurso de ódio contra os brancos chamando-os de inimigos do país. Em março de 2010, por exemplo, ele cantou “Ayesab Amagwala”, que em inglês significa “Mate o bôer”, o afrikaner que representa o colonizador de ascendência holandesa e germânica. O político de 30 anos protagonizou outros episódios como esse até ser expulso do partido no ano passado.

– Os sul-africanos ainda precisam se reconciliar com eles mesmos em um espírito de arco-íris. A Constituição é avançada e admirada em todo o mundo, mas precisam amenizar essa disparidade social – opinou o também PhD em Sociologia da Comunicação pela Universidade de Leicester (Reino Unido).

Crianças em Khayelitsha - Natalia da Luz
Crianças na África do Sul – Khayelitsha – Natalia da Luz

Para ele, o esforço deve reverter as desigualdades herdadas e conter a onda de novas desigualdades. Os sul-africanos devem proteger seus direitos como cidadãos, fornecer uma plataforma que garante a prosperidade econômica. É uma tarefa de dificuldade, tudo que o Estado, no meu sentido, não pode realizar sozinho.

Nesses anos todos de democracia e de  liberdade é evidente que a transformação não pode ser automática. Trata-se de uma nação multi-étnica, multi- racial, que ainda continua em desvantagem.

– Eles devem cultivar uma convivência não por dramatizar os seus medos e inseguranças, mas traduzir em realidade a retórica da nação arco-íris em favor da necessidade de se manterem juntos e terem sucesso como um povo, uma nação, um país, no espírito do ubuntu (filosofia africana que expressa a conexão com a humanidade).

Por dentro da África