Ed Mulato, Por dentro da África
Dizem, os índios, que entre suas tradições, uma lenda se destaca: um dia, há muitos séculos, no tempo que se perde nas brumas do passado, seus mais velhos, como de costume, estavam nos montes admirando o sol se pôr do outro lado do mar.
Porém, no meio de tanta beleza ouviu-se, repentinamente, um estrondo. Ou melhor, um som tão inusitado quanto um tiro, um baque surdo, que surgiu e desfez-se no ar. Foi quando, na praia, apareceu aquela mulher que, desesperada, levantou-se e começou a correr, quase com a velocidade do vento, em direção à aldeia. Não parou. Continuou correndo como que às cegas, cada vez mais rápido, até que desfez-se no vento, se desmanchando no ar.
Olhos tremendamente arregalados, queixos totalmente caídos, caras empalidecidas, corações disparados, os índios, transidos e assustados, voltaram seus olhos, esbugalhados, para a praia, onde tudo havia começado, posto que, dali, o estrondo havia partido.
Então, viram que o mar, lentamente, como não é de seu costume, como que reverenciava um buraco que havia se formado na praia, e que tinha o formato de um sino. Ou melhor: de um seio. Por isto deram, àquele formato, o nome de Guanabara.
Guanabara, o seio do mar
É lenda. Mas a Baía de Guanabara, ainda está lá.
– Portanto, é apenas lenda? Será?
– Éeeeh; talvez valha pena investigar.
– É claro: pelo outro lado do mar.
Lá os griots sacerdotes costumam contar que filha a de Olokun, o senhor do mar, quando foi se casar, pediu ao futuro marido que jurasse que nunca tocaria no fato da diferença de tamanho que havia entre seus seios: ela tinha medo de sua reação, caso ele tocasse no fato. Ela se sentiria enraivecida, posto que se sentia envergonhada.
Ele, apaixonado, jurou. Mas, ela não lhe pediu que fizesse outra jura: a de que deixaria o vinho de palma, no qual ele costumava, destemida, diária e rotineiramente, mergulhar.
Assim foi; casaram-se. Mas ele, dependente do álcool, todos os dias chegava em casa embebedado, o cheio do vinho impregnando tudo por onde passava. De início, ela lhe acolhia com algum carinho, e lhe trazia água, e lhe punha na cama, e lhe pedia, com todo cuidado, que parasse com a bebida, que aquilo lhe fazia mal, que ele, assim, estava acabando com a própria vida.
Ele dormia. Depois, acordava meio que arrependido pela noite passada, e jurava que nunca mais aquilo, novamente, aconteceria.
De fato, cumpria a promessa. Durante o dia. À noite, outras garrafas de vinho; e toda a cena se repetia. Se repetia, não: a paciência da moça ia acabando; e o carinho, os conselhos, a água, foram se transformando, primeiro, em incômodo e impaciência; depois, desesperança; depois, em ódio, que começava logo que se aproximava o horário em que ele, costumeiramente, chegava.
Começaram as brigas. Primeiro, rápidas. Depois, mais agressivas. As vozes, paulatina e imperceptivelmente, se erguiam. As brigas, às vezes, atravessavam a noite, e não era mais juntos que eles dormiam.
Ele, parecia que preferia largar dela do que da bebida. Até que um dia ele, já que o que a promessa põe o álcool depõe, lhe disse, no calor de incontrolável discussão:
– Você deveria é dar graças por ter-se casado com um homem como eu! Quem mais teria casado com uma aleijada, que tem um seio maior que o outro! Eu bebo por causa disto! Casei contigo por pena, mas tenho vergonha de você!
Ela, ouvindo aquilo, sentiu sua voz enrolar-se em sua garganta; o nó que assim se formou parecia que lhe oprimia o peito, forçando o tum-tum – tum-tum do desesperado coração.
Foi então que, tomada pela bonança que vem depois da tempestade, ou dominada pela calma que acoberta o pico intransponível do ódio, começou a juntar suas coisas, totalmente decidida a voltar para a casa de seu pai.
Ele, tão raivoso e descontrolado quanto o excesso de álcool pode deixar naqueles que domina, apenas gritou:
– Onde a senhora pensa que vai?!
Ela, aparentando toda a calma do mundo:
– Voltar para a casa de meu pai!
– Alguém deixou a senhora sair? – perguntou ele, com o vermelho do sangue, bombado pelo ódio, já se sobrepondo ao vermelho que o álcool havia, em seus olhos, deixado.
Foi com violência que arrancou, das mãos dela, o que ela ainda estava colocando em seus guardados. Estava tentando agarrá-la pelos cabelos quando ela escapou, e fugiu. Ele, gritando agressões que não podem ser repetidas aqui, foi atrás.
Ela, quase em desespero, correu em direção ao mar, à busca da casa de seu pai. Este, ao ver a filha em tamanho desespero, até por conhecer a violência que caracterizava o genro quando bêbado, gritou:
– Continue correndo, minha filha: entre no mar; comece a nadar. Eu paro este bêbado, nem que seja à força, por aqui!
Ela, em desespero, atirou-se às ondas. Começou a nadar o mais rápido que conseguia. Começou a distanciar-se da praia, cada mais no meio do mar.
Em sua cabeça somente passava o desejo de ir mais longe, mais longe, mais longe, de forma que a velocidade de seu nado só aumentava. Foi com o pensamento travado no desejo de distanciar-se que ela nem percebeu a praia: por isto, chocou-se na areia, abrindo um buraco no mar.
Talvez, tenha sido isto o que os índios viram. Talvez tudo não passe mesmo de lendas daqui e de lá. Será? Ou será que a Baía de Guanabara é a prova de Iemanjá chegando do mar?
Será, Guanabara, a marca do seio de Iemanjá, tornada a rainha do mar? Será? Odô, yá!