Revolta dos Malês: A jihad na Bahia

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Revolta dos Malês – Ilustração

Por Ademir Barros dos Santos, Por dentro da África

Aquele domingo, 25 de janeiro, não foi o que poderia ter sido: afinal, além de domingo, era dia santo, dia de Nossa Senhora da Guia, o que exigia grande festa como parte das homenagens ao Senhor do Bonfim; para tanto, toda a elite da capital baiana deveria reunir-se em área um tanto afastada do centro e próxima à zona rural, o que deixaria a cidade um tanto quanto vazia.

Assim sendo, já de véspera, toda a sociedade de São Salvador desdobrava-se em preparativos: a melhor roupa já estava separada; os ternos de linho branco, assim como os vestidos com renda importada, estavam impecavelmente limpos e engomados, já prontos para, refletindo a luz do sol escaldante do mês de janeiro, brilhar na procissão.

Também o padre já havia preparado, meticulosamente, seus paramentos: a estola estava impecavelmente passada; a batina, nova, aposentaria a antiga, batida e ressecada pela poeira, já sem brilho porque queimada pela constância do sol, o que não fazia jus à pompa que Nossa Senhora da Guia exigia; o andor, enfeitado com belas flores recentemente colhidas, havia sido revisado, repintado, consertado; ali, os vidros, de tão impecavelmente limpos, estavam tão transparentes que pareciam inexistir, o que dava, ao conjunto, o aspecto de novo.

Porém, aquele domingo, 25 de janeiro, não foi o que deveria ter sido. Isto, para ninguém: afinal, para os muçulmanos, o que incluía os negros muçulmanos locais, os imalê, estava terminando o Ramadã, o mês mais sagrado porque, nele, se comemora a entrega do Al Koran a Maomé; por isto, é o mês do jejum ritual, da concentração no sagrado, da absoluta devoção.

Seria por isto que entre estes, chamados, pelos brancos, malês, havia tanta excitação? Ou a possibilidade de libertar Bilal Licutan, indevidamente rebatizado, por seu dono, Pacífico Licutan, também colaborava para isto?

Afinal, Licutan nada havia feito para estar preso. Mas, estava recolhido à cadeia desde novembro, apenas porque seu dono, Antônio Pinto de Marques Varella, não havia pago suas dívidas junto aos frades do Convento do Carmo e ele, o venerável alufá, estava preso, penhorado como garantia daquelas dívidas!

Justo ele! Justo Licutan, que havia trazido, da África, o nome Bilal, o mesmo do muezim negro de Maomé, estava preso indevidamente! Se Bilal, por muezim, tinha o dever de chamar os muçulmanos à reza ainda nos tempos de Maomé, com o que preservava a devoção, era isto mesmo, a preservação da fé, o que Licutan fazia, em plena Bahia.

Justo Licutan! Estava indevidamente preso o velho alufá, líder religioso que ensinava os preceitos de Maomé a seus discípulos enquanto lhes dava a baraka, a benção muçulmana, mesmo quando em seu quarto, na casa de seu senhor, no Cruzeiro de São Francisco; a todos Licutan dava, ainda e além do conforto espiritual, seu carinho, acolhimento e devoção.

Justo Licutan estava preso; justo ele, para quem tais discípulos haviam juntado dinheiro para a alforria, o que foi recusado por seu dono, apenas por maldade. Este mesmo dono que, agora, o deixava preso, penhorado, porque ele próprio, analfabeto mas branco, não podia honrar os compromissos financeiros assumidos. Isto, embora Licutan vivesse pacificamente trabalhando para ele, enrolando fumo no Cais Dourado, onde também recebia seus discípulos.

Portanto, era hora dos muçulmanos reagirem, libertando Licutan. De quebra, era hora de manter a altivez, de ostentar a própria religião, não mais sujeitando-se, mansos e submissos, ao rebatismo com nome cristão. Era hora da revolta; e da libertação.

Assim era para ser aquele domingo, 25 de janeiro de 1835. Isto porque eles, africanos natos, nagôs, queriam que aquele domingo, dia de Nossa Senhora da Guia, marcasse a vitória dos muçulmanos, revoltados com a escravidão que lhes era imposta. Além do que, haveriam de abolir as restrições à sua religiosidade.

escritaAfinal eles, malês, sabiam ler e escrever; em árabe! Também sabiam, como é lógico, seu próprio idioma, o iorubá; além disto, na África também se comunicavam com povos vizinhos, mesmo falantes de outros idiomas – os ibos e jêjes, por exemplo – porque precisavam comerciar: daí o idioma comercial, também nativo, materno, corrente.

Para além, aqui na Bahia, ainda precisavam entender o arrevesado português do povo branco a que estavam sujeitos, posto que vindos, todos, como escravos; isto, mesmo para aqueles que, naquele momento, já estavam libertos.

Daí a dúvida, a angústia, a insatisfação: por que eles, que falavam diversos idiomas e escreviam, no mínimo, em árabe, tinham que se sujeitar àqueles analfabetos cristãos, fazendo todo o trabalho pesado que aqueles não tinham coragem de fazer? Mas, mesmo assim, ainda não podiam eles, nagôs, sequer professar a própria fé, quer enquanto muçulmanos, quer enquanto filhos de orixá? Por quê?

Por que, afinal, tinham os cristãos destruído a Mesquita de Vitória? Por que não aceitavam a fé islâmica que, entre o início do séc. VIII e o final do séc. XV, a eles tanto tinha acolhido na Península Ibérica? Por quê?

Pior ainda: aqueles brancos que os subjugavam e humilhavam, tinham vindo daquela Península; daí que conheciam bem esta história, porque parte importante e indissolúvel de sua própria história. Então, por quê?

Como não havia qualquer resposta a estas inquietações, a única saída parecia ser arrancá-las junto à própria liberdade; isto, a qualquer preço; e, para tanto, só havia o caminho do confronto, o que, naquele momento, na história da Bahia, já era fato corriqueiro.

Para os brancos, até mesmo costumeiro.

johann-moritz-rugendas-lavadeiras-do-rio-de-janeiroTanto assim que, por ali, o processo revoltoso vinha ocorrendo com certa frequência: já em 1798, a derrotada revolta dos Alfaiates; entre 1807 e 1809, a escravaria haussá havia se rebelado e, no final do levante, a sociedade secreta negra Ogboni havia atacado algumas fazendas, libertando escravos. Mas, acabaram vencidos.

Quatro anos depois, na madrugada de 28 de fevereiro de 1813, cerca de seiscentos escravos atacaram senzalas, na busca da liberdade para todo o povo negro; também liquidaram um feitor, com toda a sua família; depois, seguiram para Itapoã, onde obtiveram mais adesões. Mas, acabaram vencidos.

O ano seguinte, 1814, havia assistido à rebelião da cidade de Cachoeira, no Recôncavo Baiano, importante região produtora de açúcar para exportação. Mas, também ali, os revoltosos foram vencidos.

Em 1816, vários engenhos em Santo Amaro da Purificação foram incendiados; sete anos depois, escravos de um tumbeiro que se dirigia à Bahia se revoltaram, matando inúmeros tripulantes. Mas, ambos também foram vencidos.

Em 1826, o quilombo Urubu invadiu e quase ocupou a capital baiana. Mas, também acabou vencido; apenas quatro anos depois, no dia 10 de abril, iniciou-se outra revolta, com o ataque a uma loja na ladeira Fonte das Pedras. Que, novamente, termina com os revoltosos vencidos.

Escravo nagô – Reprodução

Portanto, entre 1798 e 1830, pelo menos oito revoltas. Em todas, talvez por falta de planejamento e organização, o povo negro havia sido vencido.

Decorre que, embora a sociedade branca permanecesse assustada com tantas revoltas, o que lhes lembrava, particularmente, o massacre de brancos havido no Haiti em 1791, o espírito negro, especialmente quando africano nato, não se conformava mais com a submissão de seu corpo e mente àqueles brancos, analfabetos, cruéis e ignorantes, cujo direito sobre si não tinha qualquer justificativa.

Portanto, vencê-los parecia ser, apenas, questão de planejamento e organização; não apenas de agressividade momentânea, de espasmos de revolta reativa e inconsequente como, até aqui, parecia ter ocorrido.

Para os negros, a liberdade via conspiração parecia possível; já assim o havia demonstrado o exemplo haitiano que, produzindo a única revolta vitoriosa de escravos da história, terminou por conseguir a independência; isto, frente à poderosa França, em 1804.

É certo que, por lá, o levante havia durado algo em torno de treze anos. E que, para tanto, Toussaint L´Ouverture, o Napoleão Negro, e depois Dessalines, enfrentaram e venceram tropas francesas e inglesas, que lhes queriam novamente dominar. O que lhes foi impedido pelos revoltosos.

Como decorrência, o povo branco, não só da Bahia, mas de todos os territórios colonizados, temia revoltas similares em sua própria terra, até porque ninguém quer ser massacrado.

Mas, o final do escravismo também não era motivo de discussões entre eles, que se julgavam onipotentes donos da terra e das gentes; portanto, lhes parecia bastante a manutenção ativa da vigilância, para que as revoltas fossem debeladas logo no começo. Afinal, negros não tinham capacidade para organizar-se, nem para planejar, pensavam eles.

Porém, para o povo negro, apenas a revolta parecia possível.

Além do que, a facilitar a possibilidade de organização, Salvador, aquele importante porto baiano, já desde o começo do século, convivia com grande quantidade de negros de ganho que, até por isto, tinham relativa liberdade para ir e vir e, consequentemente, para manter-se em contato e firmar opiniões, formando sociedades próprias, inclusive reivindicativas.

Também o contexto mundial, com os ingleses já combatendo acintosamente o tráfico escravo, fez surgir clubes secretos, lojas maçônicas, grupos intelectuais e associações similares que, na Faculdade de Medicina, no Liceu Provincial e em diversos outros locais, discutiam novas ideias, modernas para a época, tais como a implantação da República, o Federalismo e, algumas vezes, até mesmo o separatismo.

Havia ainda, no mesmo sentido, a imprensa de vanguarda que, reproduzindo a voz de Cipriano Barata, Antônio Pereira Rebouças, Inácio Acioly e outros, pregava reformas políticas e sociais, no rumo da modernidade. Ente elas, o fim do escravismo.

Daí que o ambiente era favorável e, até mesmo, estimulante, para a efetivação de nova revolta, desde que devidamente planejada e organizada. Foi o que fizeram os negros africanos natos, de cultura nagô – iorubás, em sua maioria – que professavam a religião de Maomé. Daí o nome Revolta dos Malês.

Com este objetivo, é possível que a mente não desprezível do alufá Licutan, ainda antes da cadeia, tenha imaginado o seguinte:

-um grupo, urbano, poderia ramificar-se por diversos lugares por onde, comumente, os negros de ganho, bem como os de canto, sendo estes profissionais especializados, transitavam: Ladeira da Praça, Convento das Mercês, Guadalupe, Cruzeiro de São Francisco, Largo da Vitória, Beco do Grelo, Beco dos Tanoeiros, etc.; como dirigentes, o próprio Licutan, o liberto Manoel Calafate, além do nupe Luís Sanim, o haussá Elesbão do Carmo, também chamado Dandará, Belchior, entre outros;

-outro grupo deveria ser composto por escravos e libertos que transitavam pelo Clube da Barra; este, ficaria sob o comando dos negros locais, mantendo ligações com os navegantes, especialmente os trabalhadores dos saveiros.

Este segundo grupo, por seus constantes contatos com escravos que faziam o transporte de produtos do Recôncavo para o porto, deveria envolver, em seus planos, os negros da zona rural, promovendo a reunião dos africanos de Santo Amaro e de Itaparica com os de Salvador, para discussão dos detalhes do movimento.

Estes dois grupos poderiam ramificar-se; mas, deveriam manter-se em constante contato, de forma a sempre afinar os detalhes do plano.

Para além, havia Ahuna, o iorubá alto, forte, altivo, com voz de comando, que trazia, em cada lado do rosto, as cicatrizes que identificavam sua etnia; era ele escravo de ganho de um homem que, na Rua das Flores, vendia água limpa para cozinhar, então chamada “água de gasto”.

Mais que isto, Ahuna era imã, ou seja: autoridade religiosa no islamismo, como o é o padre e o pastor nas demais religiões reveladas; por isto, atendia pelo apelido de “maioral”; era a ele que caberia, no momento certo, organizar os escravos das fazendas, especialmente de Santo Amaro, posicionando-os sobre o dia e hora exatos da revolta, até porque muitos dos rebeldes afirmavam que só entrariam em luta se comandados por ele. O que dá, à revolta, iminente caráter de religiosidade. Verdadeira jihad sob o sol da Bahia.

Assim planejados e organizados, os malês, todos africanos natos, se prepararam para o levante daquele domingo, 25 de janeiro de 1835; esperavam que a cidade de Salvador, até por conta das celebrações de Nossa Senhora da Guia, que coincidiu, naquele ano, com o final do Ramadã, estivesse desguarnecida e vazia.

Mas, o destino tem, por ofício, ser incerto e não sabido. Principalmente quando auxiliado pelo acaso que, naquele domingo sagrado, não se fez de rogado.

Por isto, aquele domingo não foi o que deveria ter sido.

Acontece que o africano liberto Domingos Fortunato, no início da noite de sábado, após o final do trabalho, foi para casa muito preocupado com o que havia presenciado no cais: havia, ali, forte agitação de negros de saveiro que, muito entusiasmados, comentavam com outros escravos, chegados de Santo Amaro, sobre a reunião em que Ahuna havia informado que o levante aconteceria no alvorecer do dia seguinte, domingo de Nossa Senhora da Guia. Isto, provavelmente, logo após a primeira das cinco rezas diárias que o fazer muçulmano determina.

Segundo estas conversas, era de se esperar que Pai Manoel, velho e respeitado por seus conhecimentos do Islã, denominado Manoel Calafate por sua profissão de calafetar, ou seja, tapar os buracos de navios, àquela altura da madrugada, provavelmente seguindo determinações de Licutan e Ahuna, já tivesse distribuído amuletos aos revoltosos que, certamente, já então estariam vestindo seus brancos abadás sagrados.

Tais amuletos eram similares aos patuás ou, ainda, aos escapulários: um saquinho de couro, contendo objetos consagrados; também ali havia frases do Al Koran, levando o fiel a crer que, morrendo em combate com esta prova de entrega à fé islâmica, teria as benesses que seu Livro Sagrado promete àqueles que caem lutando por esta confissão.

Erroneamente, há quem diga, ainda, que os malês acreditavam que aquele era o amuleto que “fechava” o corpo, protegendo seu portador da morte. Mas, basta saber que os malês tinham, consigo, tanto organização e leitura, para inferir como é difícil manter este discurso, de mera superstição.

Prosseguindo: Domingos conta tudo para sua mulher, Guilhermina Rosa, também liberta; quase ao mesmo tempo, chega à casa dela sua comadre Sabina da Cruz, comentando que seu marido, Victorino Sulê, que fazia parte do grupo do Clube da Barra, havia comparecido ao jantar em que Ahuna, mais outros africanos, discutiram os últimos detalhes da revolta do dia seguinte.

Guilhermina, talvez por receio do destino de Domingos e Victorino, talvez por receio próprio, temendo o que poderia acontecer com todos os malês e, talvez, com todos os negros de Salvador caso o levante não desse certo, resolve denunciar tudo às autoridades. Quem sabe, não seria até recompensada por isto?

Assim ela pensa, assim ela faz: em pleno início da madrugada do dia 25, dia planejado para o levante, conta tudo para seu vizinho branco, André Pinto da Silveira, que decide encaminhar a denúncia ao Juiz de Paz, José Mendes da Costa Coelho.

Este, entre outras providências, aciona outro juiz de paz, Caetano Vicente de Almeida Galião que, com o inspetor de quarteirão Joaquim Pereira Arouca Junior e vários soldados e guardas permanentes, comparece à Ladeira da Praça, no centro antigo de Salvador onde, segundo a denúncia, havia, em um sobrado, cerca de cinquenta malês reunidos, à espera do início da ação.

Como, sob a desculpa de haver perdido a chave, o alfaiate Domingos Marinho de Sá, que os atende, não abre a porta do sobrado, eles resolvem arrombá-la, o que faz com que os malês, sob o comando de Manoel Calafate, rompam o cerco aos gritos de “mata soldado”, além de muito xingamento em iorubá e, quem sabe, no árabe malê.

Vencido o cerco, os revoltosos, na tentativa de libertar Licutan, atacam a Câmara Municipal, onde funcionava a cadeia pública; mas, não são bem sucedidos.

Assim começa a desmoronar todo o planejamento, toda a logística, todo o detalhamento da ação, prejudicada porque precipitada pela delação de Guilhermina.

Mesmo assim, o levante prossegue e a coluna de revoltosos, que já agora somava mais de quinhentos homens, segue em direção a Água dos Meninos; evitam passar pelo Quartel da Cavalaria onde, alertados, soldados já se preparavam para a verdadeira guerra contra os negros que, a seus olhos, vestindo abadás brancos, talvez semelhassem um bando de fantasmas tentando repetir o massacre ocorrido, há pouco mais de quarenta anos antes, no Haiti.

Mas, não havia outro caminho para chegar ao Cabrito, onde haviam marcado encontro com os escravos de engenho.

Assim sendo, é lá, em Água dos Meninos, que o levante é contido; ao final, contra algo em torno de setenta revoltosos, muitos deles afogados, posto que se atiraram ao mar diante do sangrento ataque, à bala, dos soldados da cavalaria, cerca de dez brancos estavam mortos. Nenhum a tiros: os revoltosos não tinham armas de fogo para enfrentar tão desequilibrada guerra.

Ahuna luta bravamente no levante; até consegue, com seu prestígio, agregar, ao movimento, muitos outros escravos que não haviam participado dos preparativos.

Perde muitos amigos e companheiros; mas, continua lutando até o fim. Acaba capturado quando o levante já estava contido pelas autoridades escravistas locais. Colocado no “rol dos culpados”, é indicado, por vários companheiros, como o principal articulador do levante; acaba condenado à pena máxima do Império: a pena de morte.

Porém, os mitos contam que Ahuna, tido como “aquele que vê sem ser visto”, o “homem que surgiu do nada”, nunca foi encontrado: acredita-se, mesmo, que tenha conseguido escapar pelo Recôncavo e, talvez, até voltado à África.

Quanto ao alufá Licutan, contam que chorou copiosamente, em sua cela, quando soube do fracasso do movimento. Como pena, foi condenado aos açoites; há quem diga que recebeu seiscentos, há que diga que recebeu os mil e duzentos a que foi condenado.

No entanto, qualquer que lhe tenha sido, afinal, a quantidade de açoites efetivamente aplicada, o certo é que, como a lei só permitia a imposição de cinquenta chibatadas por dia, aquele alufá, embora alto e altivo, era avançado em idade; mas, mesmo assim, foi chicoteado por, pelo menos, doze dias; possivelmente, seguidos!

Talvez tenha sido esta a crueldade, que chegou a levar o negro Narciso à morte, o que fez com que, no ano seguinte, a pena de açoite deixasse de existir.

Vencido o levante, penas diversas foram aplicadas aos revoltosos: além das chibatadas em Licutan, outros dezesseis presos, assim como Ahuna, foram condenados à morte. Mas, apenas quatro foram, efetivamente, executados.

Muitos outros foram condenados a trabalhos forçados, especialmente nas galés. Para os libertos suspeitos, se com culpa não comprovada, houve a deportação para a África. Para além, algumas poucas penas de simples prisão.

Esta a breve história do maior levante de escravos ocorrido no Brasil que, na verdade, acabou disparando outra série de reações, que culminaram com a extinção do sistema escravista em nosso país.

Já dois anos depois dele, a mesma Salvador vê ocorrer a Sabinada; a Cabanagem, no Pará, acontece entre 1835 e 1840; a Balaiada, no Maranhão, vai de 1838 a 1841; assim também as revoltas de São Paulo e Rio de Janeiro, aqui, com destaque a Vassouras, além de outras, ocorridas a partir de 1880.

O fato é que, mesmo sem planejar ou querer, os malês contribuíram para forçar o fim do tráfico negreiro para as Américas: todas as províncias do País ficaram muito temerosas com o levante da Bahia, não só porque, lá, a população de escravos e libertos era muito superior à de europeus e mulatos. Não. Mas, sim, porque aqueles negros demonstraram saber ler, escrever, e ter poder de organização e logística, o que, para a elite branca era, até então, algo próximo do impossível.

Como agravante, aos olhos da elite baiana, pareceu que os revoltosos contavam com o apoio, mesmo que informal, dos ingleses, de quem muitos deles eram escravos. Isto, porque o esforço inglês para o fim do tráfico, já datava do início do século:

. em 1807, aquela Coroa havia proibido, a seus súditos, a participação no comércio de carne falante africana;

. em 1810, havia conseguido restringir o tráfico português aos domínios lusitanos na África e nas Américas;

. sete anos depois, obteve, de Portugal e Espanha, o compromisso de interromper o tráfico ao norte da Linha do Equador, o que, evidentemente, não foi cumprido: caso contrário, os malês, todos africanos natos do Golfo da Guiné, não estariam no auge de sua atividade física e intelectual quando da revolta aqui apresentada;

. mais quatro anos e a Inglaterra atrai, para sua causa, boa parte das nações latino-americanas recém-independentes;

. mais três anos e consegue, dos Estados Unidos, o reconhecimento que o tráfico negreiro deveria ser considerado ato de pirataria;

. em 1826, o Tratado do Rio de Janeiro, assinado no ano seguinte, estabelece o prazo limite para a legalidade do comércio negreiro brasileiro: o ano de 1830;

. é seguindo esta linha que se promulga a Lei Feijó, de 1831 que, por acintosamente não cumprida, é chamada “lei para inglês ver”.

No mesmo diapasão, há que se levar em conta que, dois meses após o levante, Mr. Fox, enviado especial do Reino Unido ao Brasil, escreve ao primeiro-ministro inglês, Henry Temple, visconde de Palmerston, que o terror que se propaga longe e largamente através do Brasil, depois da última insurreição de negros da Bahia, tornou o presente momento favorável para que este governo receba bem qualquer disposição para melhorar e reforçar a legislação contra o tráfico de escravos. Os olhos de quase todas as pessoas começaram a se abrir, se não à infâmia do tráfico de escravos, ao menos ao enorme perigo de deixar entrar no Brasil esta multidão de novos africanos.

É assim que, embora promulgada a “lei para inglês ver”, os ingleses viam e não gostavam do que viam: como decorrência, seu Parlamento aprova, em 1845, a chamada Bill Aberdeen (Slave Trade Suppression) Act, autorizando o aprisionamento, em pleno mar, dos navios negreiros; que poderiam, inclusive, ser afundados pelos ingleses.

É este o ato que obriga o Brasil a fazer-se de sério, publicando, em 1850, a Lei Eusébio de Queiroz que, enfim, elimina o tráfico negreiro de nossas praias.

Os desdobramentos finais apontam, no Brasil, para a Lei do Ventre Livre, de 1871, a revogar o antigo e universal costume partus sequitur ventrem, que impunha, ao nascituro, a mesma condição de livre ou escravo de sua mãe.

O ano de 1884 vê a abolição formal da escravatura acontecer no Ceará, iniciada, em 01.jan.1883, pela cidade de Acarape, até por isto renomeada Redenção; a partir daquele ano, Amazonas e Rio Grande do Sul seguem o mesmo exemplo.

A seguir, a Lei dos Sexagenários, de 1885, declara livres os escravos que atingissem sessenta anos, desde que pagassem, como pedágio, mais três anos de trabalho; aos que já não podiam trabalhar, cinco anos era o tempo imposto. Certamente, esperava-se que este inválido escravo, depois de tanto trabalhar a terra, por morto, também a adubasse com seu cadáver que, assim, se tornaria novamente útil.

Seguiu-se a lacônica Lei Áurea, cujos efeitos, muitos deles altamente perniciosos aos negros, ainda hoje são sentidos.

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