Por Natalia da Luz, Por dentro da África
Cidade do Cabo – Nascida em Ruanda, ela presenciou um dos maiores genocídios do século passado. Em meio ao conflito, viu muitos “defensores da paz” virarem as costas deixando o seu povo ser massacrado. Por pouco, Monique Mujawamariva não integrou a triste estatística que, em abril de 1994, atingiu o seu país. Em apenas 100 dias, 800 mil pessoas perderam suas vidas à bala ou à facada. Crianças, mulheres e idosos foram condenados à brutal pena de morte pelo fato de pertencerem à etnia diferente do grupo que comandava as ruas. Os ruandeses que ergueram a bandeira da paz, independentemente de sua etnia, também foram alvo. Monique estava do lado da paz e, por isso, quase perdeu a vida.
Em abril de 1994, o país limitado por Uganda, Burundi, República Democrática do Congo (na época Zaire) e Tanzânia presenciou o maior genocídio africano dos anos 90. O estopim foi o atentado ao jato particular, no dia 6 de abril de 1994, do então presidente ruandês Juvenal Habyarimana, um hutu. Ele e o presidente de Burundi estavam a bordo quando um míssil atingiu a aeronave. Até hoje, não se sabe a autoria do ataque. Na investigação, muitos possíveis suspeitos foram listados como, por exemplo, o coronel Paul Kagame, líder da Frente Patriótica Ruandesa, mas ninguém foi culpado.
Em ano antes do início do conflito, a ativista ruandesa convivia e agia para minimizar a tensão entre hutus e tutsis. Em meio ao crescimento do ódio, ela enxergava uma guerra cada dia mais próxima. A mesma guerra que os Estados Unidos e diferentes organizações internacionais, mesmo em posse de intermináveis relatórios e provas do que estava por vir, preferiram não olhar. Em entrevista exclusiva ao Por dentro da África, Monique, que esteve com o ex-presidente Bill Clinton quatro meses antes de 6 de abril de 1994, conta que milhares de ruandeses poderiam ter sido salvos, se, realmente, os que se diziam “defensores da paz” quisessem.
Por dentro da África – Qual o motivo que a levou ao presidente Bill Clinton?
Monique Mujawamariva – Eu conheci o ex-presidente Clinton em 10 de dezembro de 1993, na Casa Branca. Ele decidiu fazer uma cerimônia para celebrar a assinatura da Declaração dos Direitos Humanos. Nesta ocasião, a organização americana para a defesa dos direitos humanos premiou os melhores ativistas e eu ganhei um desses prêmios. Dentre 11 colegas que haviam ido de todas as partes do mundo, eu fui a escolhida para apertar as mãos do ex-presidente Clinton e trocar algumas palavras com ele.
PDA – Vocês falaram especificamente sobre Ruanda?
MM – Nesse momento, as Nações Unidas estavam criando o Comissariado para os Direitos Humanos, mas os Estados Unidos vetaram e a resolução não passou. Eu disse ao presidente para ajudar a dar apoio para a criação do Alto Comissariado porque seria um grande incentivo para os ativistas em terra. Ele me prometeu e, 10 dias depois, em 20 de dezembro, ele manteve a promessa. Foi criado, então, o Alto Comissariado.
PDA – Na sua opinião, como estava a situação em Kigali (capital) naquele exato momento?
MM –A situação em Ruanda era de insegurança total. As negociações de Arusha tinham começado com o governo hutu. Qualquer pessoa que tentasse se opor às regras dele teria sérios problemas. Eles (grupo pró-governo) selecionavam assassinatos contra oponentes e ativistas de direitos humanos. Muitos tutsis eram confundidos com rebeldes da Frente Patriótica de Ruanda (grupo de rebeldes que agia em oposição ao governo hutu) e, constantemente, eram apontados como traidores. Eu mesma escapei de ser assassinada e trago até hoje cicatrizes em meu rosto.
PDA – Você mostrou algum documento de alerta para o então presidente dos Estados Unidos?
MM – Sim. Eu falei com o ex-presidente sobre a situação de alerta em Ruanda, mas eu tinha aprendido que tudo o que acontecia em Ruanda não era desconhecido por ele. Eu escrevi muito a respeito, a Human Rights Watch também, e o serviço de inteligência dos Estados Unidos ficou de posse de todos esses documentos.
PDA – Como a população se sentia em relação à omissão da ajuda internacional?
MM – As pessoas que sofriam a brutalidade não esperavam nada de ninguém, mas os intelectuais que estiveram na chegada dos defensores da paz viram aquilo como uma garantia de sobrevivência. Então, se desesperaram ao serem abandonados quando se depararam com assassinos e a violência. Eles se sentiram traídos e foram encorajados pela pressão que envolvia as negociações do Acordo de Arusha. Eles ficaram surpresos em ver como todos que pareciam interessados no caso de Ruanda simplesmente desapareceram quando o sangue começou a jorrar. Desde então, isso vem sendo provado: quando as pessoas são confrontadas por um regime sangrento, elas serão salvas apenas por suas próprias instituições. Instituições com defensores da paz são a pior piada.
PDA – Que tipo de ajuda seria necessária para minimizar o resultado do conflito iniciado em 6 de abril?
MM – Eu sei que há um provérbio africano que diz que “quando as armas falam, as pessoas não se reconhecem mais”. Poderíamos ter salvo mais ruandeses se o exército tivesse sido levado para parar o massacre entre vítimas e assassinos. Se os “defensores da paz” tivessem decidido parar os assassinos, conseguiríamos ter colocado isso em prática. Um jovem capitão senegalês, por exemplo, salvou sozinho 600 pesos protegendo eles dos assassinos.
Os comboios que me retiraram de Ruanda no dia 12 de abril foram atacados pelo exército genocida. Quando os soldados belgas viraram as costas não havia mais ninguém vivo após dois minutos. Nós deveríamos ter salvo vítimas ruandesas, se realmente alguém quisesse… Depois de ver tudo aquilo em Ruanda, não estamos falando sobre armas, não estamos agindo hoje com a Síria…
PDA – Você acha que o genocídio serviu de lição para os Estados Unidos e Nações Unidas?
MM – Os Estados Unidos não aprendem lições com os dramas do mundo. Eles sempre souberam o que fazer, mas ficaram humilhados e traumatizados pela “aventura” na Somália, por exemplo. Por isso, eles têm decidido não intervir quando os interesses deles não são ameaçados. As Nações Unidas não têm aprendido nada com tudo isso. Seguindo todos esses conflitos que as Nações Unidas tentaram intervir, vemos um triste recorde de cadáveres. A ONU é uma instituição muito cara e não muito utilizada. Eu me pergunto porque ela ainda existe, após tanta ineficácia comprovada.
PDA – Você acha que o “Caso Ruanda” ajudou a mudar os parâmetros internacionais de intervenção?
MM – A tragédia em Ruanda não foi lição para ninguém. Agora, sabemos o valor do ser humano, avaliado de acordo com a quantidade de petróleo do seu país ou quaisquer outros recursos que interessem às grandes potências. A vida, infelizmente, não tem valor, e as pessoas pobres não querem nem mesmo seu próprio governo. Isso me deixa muito triste…
PDA – O que você gostaria de ter feito se você estivesse no comando?
MM – Se eu tivesse no controle, eu mudaria as Nações Unidas, com poder decisório, e teria um exército profissional que não tivesse medo de intervir e de se colocar entre os civis e os rebeldes armados. Civis devem ser protegidos. Agora, os defensores da paz não são nada mais do que uma patética farsa.
PDA – Você é uma importante mulher na luta pelos direitos humanos. Gostaria de ter tido contato com mais pessoas como você durante o conflito?
MM – Sim. Eu admirava o trabalho dos outros ativistas, mas ser um ativista em terra, um ativista no escritório e um ativista diante da mídia são coisas muito diferentes. Às vezes, nós tomamos o ativista em terra como uma ferramenta, não como um ser humano. Esse é um tema para ser desenvolvido em partes, porque ele toca em momentos sensíveis da minha vida como ativista.
Veja mais: Ruanda: o impasse entre a soberania de Estado e a intervenção diante do genocídio
Este conteúdo pertence ao Por dentro da África. Para reprodução, entre em contato com a redação
Por dentro da África