“Esse conflito mudou a imagem do país. Não somos rebeldes, somos pacíficos”, diz maliano

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Protesto no Mali - Firstladymali.com

Natalia da Luz, Por dentro da África 

Rio – Sede de três grandes impérios da África Ocidental (Gana, Mali e Songai), a região onde hoje está localizada o Mali alcançou o seu ápice em meados do século XIV, quando se tornou o centro de comércio na África e de conhecimento islâmico. No mesmo período, ela se orgulhava por sua produção intelectual que reunia mais de 25 mil estudantes na Universidade de Sankore, em Timbuktu, considerado patrimônio da Humanidade pela Unesco. Hoje, regiões do país vivem sob tensões provocadas por extremistas após o golpe político, em março de 2012.

– São muitas as causas desse confronto. O fluxo de armas da Líbia, o roubo dos arsenais do Gaddafi, as divisões étnicas e culturais… Os tuaregues (povos nômades que vivem no deserto do Saara) representam uma etnia dominante no norte do Mali e se sentem excluídos porque não se veem como prioridade do governo – explica, em entrevista ao Por dentro da África, Kai Michael Kenkel, professor do Instituto de Relações Internacionais da PUC – Rio.

Cenas do conflito no Mali - Fonte: MaliwebAs tensões também foram acirradas devido às pretensões separatistas para o norte do país por parte dos tuaregues, organizados formalmente pelo Movimento Nacional de Libertação de Azawad (MNLA), entre outros. Mesmo mostrando disponibilidade para negociar com os tuaregues, o presidente provisório Dioncounda Traoré não obteve sucesso e viu a instabilidade se propagar pelas cidades de Kidal, Gao e Timbuktu

– O povo ficou enormemente decepcionado quando viu o governo corrompido por apoiar apenas a elite. Após a guerra na Líbia (fevereiro a outubro de 2011), muitos combatentes voltaram com armas. As pessoas acabaram se beneficiando da ocasião e da assistência da Al Qaeda para fortalecer a rebelião” – conta ao  Por dentro da África o maliano que trabalha com tecnologia da informação Aboubacar Kone, destacando o cenário em seu pais no período pré-golpe de Estado, em março de 2012.

Golpe de Estado e extremistas 

Mapa com as regiões de conflito
Mapa com as regiões de conflito

Kone lembra que as primeiras manifestações foram organizadas pelas mulheres de soldados para exigir mais segurança para seus maridos. Em seguida, foi a vez dos próprios soldados protestarem e se erguerem contra a inércia econômica e social que deixa o país em 175º lugar no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) das 187 nações pesquisadas.

– Muitas pessoas acreditavam que o golpe de Estado era uma maneira de se livrar dos políticos corruptos, mas logo perceberam que os soldados não poderiam controlar a situação, e isso acabou abrindo espaço para os extremistas – lamentou, afirmando que esses radicais alteraram a imagem do país.

Para Kenkel, especialista que atua nas áreas de Operações de Paz e Ajuda Humanitária, a ideia de independência dos tuaregues é muito bem vista pela população, mas o extremismo não. Ele destaca que o grupo  tem um caso clássico de busca pela independência não apenas no Mali, mas em outros países do Sahel (área fronteiriça entre o deserto e a savana) como Mauritânia, Chade e Níger.

Um dos desejos dos extremistas (lembrando que nem todo tuaregue é radical) é a aplicação da Sharia (a lei islâmica). Em julho do ano passado, um casal que vivia junto foi apedrejado até a morte por não ser oficialmente casado. A Anistia Internacional condenou o ato.

Aboubacar Kone, de Bamako - Foto: Arquivo Pessoal– Neste caso, foram bandidos que usaram a lei para cometer um crime. Existe um grande problema de racismo. A lei está sendo aplicada aos negros. A população, no geral, não tem medo dela. Não se pode usar as armas para impor a Sahira. Você deve aderir voluntariamente – explica.

No país onde cerca de 90% da população (de 15 milhões de habitantes) são muçulmanos, Kone destaca que religião e política tinham seus devidos espaços, mas por incompetência da política, a religião tomou a cena.

Episódio na Argélia 

O conflito no Mali respingou na vizinha Argélia, onde aconteceu o sequestro de trabalhadores de uma refinaria de gás, em Amenas, no mês de janeiro. Na ocasião, 23 reféns e 32 rebeldes foram mortos. O grupo, ligado à al-Qaeda, liderado pelo extremista Mokhtar Belmokhtar, assumiu o ataque como represália à intervenção militar francesa no Mali.

– Eu penso que a repercussão tomou muitas direções. Isso porque a imprensa não faz realmente o seu trabalho: a maioria de  apresentadores e jornalistas não está bem informada. Eles não levam em conta o contexto em que estamos. Por outro lado, as redes sociais comandadas pelos jovens foram realmente muito ativas e fizeram um ótimo trabalho durante os protestos.

Intervenção Internacional 

No dia 20 de dezembro de 2012, a ONU autorizou o envio da Missão de Suporte Internacional liderada pela África no Mali (AFISMA), a fim de prestar assistência às autoridades na recuperação de regiões controladas por rebeldes. Em 11 de janeiro, o presidente da França François Hollande anunciou o envio das primeiras tropas ao país, o que gerou, em muitos críticos, desconfiança sobre a real intenção da nação europeia em sua ex-colônia –  rica em urânio, ouro, petróleo, ferro, diamante e outros minerais.

Chegada em Bamako, capital do país - Bamako T– Os avanços franceses foram decisivos para o Mali. Os franceses decidiram adiantar a missão que, há um ano, a União Européia anunciou que faria em setembro de 2013. Os extremistas foram para as ruas antes do que eles imaginavam, e o exército francês, que é muito bem preparado e posicionado na África, entrou em cena – ressalta Kenkel, PhD em Relações Internacionais pelo Instituto de Estudos Internacionais, em Genebra.

Quando perguntado sobre a intervenção internacional, o maliano responde que seu país deve moldar seu próprio destino para recuperar seu orgulho nacional. Apenas da França, o número de soldados já soma 4 mil, metade do contingente da missão da ONU, que concentra tropas dos países vizinhos (como Burkina Faso, Costa do Marfim, Senegal e Chade). Neste sábado, o governo francês confirmou, após resultado de testes de DNA, a morte de Abdelhamid Abu Zeid, um dos princípais líderes da Al Qaeda na África.

– Se a comunidade vem para nos ajudar, ela será bem-vinda, mas temos que ser também protagonistas desse confronto. A situação é muito complicada porque não queremos os políticos antigos, mas também não queremos do jeito que está. É necessário reconhecer que a intervenção francesa foi positiva – diz, completando que as tropas francesas deram esperança e tempo para o povo recuperar a confiança.

Kai afirma que há considerações políticas na ação da França no país africano, mas existe um componente de comprometimento em estabilizar a região que é real.

– A França é a potência colonial que mais intervém. Se observamos os conflitos em curso veremos que sempre são os franceses que empurram as decisões sobre envios de tropas da Europa – destaca .

Refugiados 

Deserto do Saara - Foto: MaliymasDois meses depois da intervenção francesa, o número de malianos deslocados pode chegar a 400 mil, segundo a ACNUR, Agência da ONU para Refugiados. Em regiões de Mopti, Gao e Timbuktu, ainda há relatos de ataques e de muitas minas terrestres que fazem das crianças as maiores vitimas. Segundo a UNICEF, duas em cada três pessoas mortas ou feridas por restos de munições ou explosivos no centro e norte do Mali são crianças.

– Timbuktu e Gao estão mais seguras e, mesmo sendo em grande número, os refugiados estão retornando para as suas cidades. A região de maior instabilidade é Kidal, cenário de um conflito onde os exércitos da França e do Chade atuam.

Desafios 

O país se depara com grandes obstáculos em seu caminho como a corrupção e a pobreza (cerca de 70% da população vivem abaixo da linha da pobreza), mas a expectativa maior tem data: julho, quando as eleições gerais deverão ser realizadas.

– O ponto principal para estabilizar o pais é criar condições de segurança, e depois, sim, estabelecer o processo de transição política. Dentro das condições de segurança, o desarmamento deve ser realizado porque não existe desenvolvimento sem o desarmamento – conta Kay.

Protestos no Mali - Bamako TV Para Kone, as situações mais urgentes são: cuidar dos refugiados, garantir a segurança, promover a reconciliação dos grupos étnicos, formar um novo exército e organizar eleições. Desta maneira, eles reconstruiriam o país abalado pelo confronto.

– Durante a ocupação, grupos armados cometeram estupro, vandalismo, casamentos forçados. Devemos deixar que a justiça faça o seu trabalho. Somos muçulmanos há séculos. Não pregamos violência. O nosso islã não tem bomba nem armas