“Canto em crioulo porque há uma maneira de ser em nossa língua que o mundo precisa conhecer”, diz a cantora Karyna Gomes

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Karyna Gomes – Divulgação

Natalia da Luz, Por dentro da África

Rio – Ela nasceu de filhos de ex-combatentes que lutaram pela liberdade da primeira colônia da África lusófona a conquistar a sua independência. A cantora Karyna Gomes cresceu em meio ao sentimento de retomada de identidade. Na Guiné-Bissau, ela lembra que seus pais nunca deixaram seus valores para enriquecerem, exemplo que ela leva para suas canções que, em crioulo, tentam tocar a alma de quem ouve.

– Cantando em crioulo, eu quis provocar um ‘mundo’ enorme a me questionar sobre o que digo e, consequentemente, despertar curiosidades sobre a minha língua, que é tão linda e tão completa como todas as outras. O crioulo da Guiné é particular, é único! Tem expressões com uma riqueza filosófica ímpar – disse Karyna em entrevista exclusiva ao Por dentro da África. 

O estilo musical da guineense foi moldado ao longo da vida. O encontro com a música foi ainda na infância, mas Karyna aponta 1997 como um marco. Naquele ano, como parte do Coral Gospel Rejoicing Mass, ela enxergou na música o seu destino.

Karyna Gomes – Divulgação

Karyna canta em crioulo, língua materna de 80% da população da Guiné-Bissau. Junto com o crioulo de Cabo Verde, seu idioma forma o Grupo Crioulo da Alta-Guiné, o mais antigo de Línguas Crioulas com base na Língua Portuguesa. A miscigenação entre os nativos e os portugueses influenciou idiomas crioulos de origem lusitana em todo o mundo.

De acordo com Dulce Pereira, do Instituto Camões, enquanto o crioulo cabo-verdiano se manteve apenas em contato com a língua portuguesa, os crioulos da Guiné-Bissau coexistem não só com o português e o francês, respectivamente, mas com as múltiplas línguas africanas do território, de que recebem constantes influências. Mais especificamente na Guiné-Bissau, o crioulo, língua materna ou língua segunda de grande parte da população, convive com mais de vinte línguas dos grupos Oeste-Atlântico e Mande.

– Há uma maneira de ser na minha língua que não há em nenhuma outra. Temos expressões que não se traduzem, e o mundo precisa conhecer. Isso poderia mudar muita coisa. Acho que compreender o ‘kriol’ , nesse caso, seria perceber o que a história fez ao juntar línguas que ‘pariram’ outras – ressaltou Karyna, que será uma das atrações do Atlantic Music Expo 2015, de 6 a 9 de abril em Cabo Verde.

guine mapA Guiné-Bissau é um país da África Ocidental que faz fronteira com o Senegal, Guiné Conacri e Oceano Atlântico. O país, de cerca de 1,6 milhão de habitantes, fazia parte do Reino de Gabu e do Império Mali. Partes do reino persistiram até o século XVIII, enquanto algumas ficaram sob domínio dos portugueses desde o século XVI. No século XIX, a região foi colonizada e passou a ser chamada de Guiné Portuguesa.

Karyna nasceu dois anos após a independência. Quando a guerra de libertação começou, em janeiro de 1963, as forças portuguesas já combatiam em Angola. Isso fez com que autoridades portuguesas se preparassem para ações de guerrilha em Moçambique e na Guiné. Assim, quando a guerra tomou a Guiné-Bissau, a guerrilha se deparou com uma repressão mais intensa.

– A revolução é uma das minhas bases, sem dúvida. Na minha música, falo das mães e das valentes senhoras que lutam diariamente para manter suas famílias no meu continente e em outros. Falo de um povo maravilhoso, de temas que mexem com o sentimento das pessoas, que estão diretamente ligados com a motivação, ou seja, não correu bem desta vez? Continue e não se canse, pois valerá sempre a pena lutar para conquistar os ideais de liberdade na Guiné e no mundo – contou a guineense, que prepara o seu segundo álbum depois de Mindjer (Mulher, em crioulo).

Pergunto o que tem em Mindjer e, rapidamente, Karyna diz: “Tem amor, tem alma, tem um pouco de revolta, mas com base na necessidade de reconstrução de valores que se inverteram…”

Influência e estilos musicais

Karyna Gomes – Divulgação

Filha de pai guineense e mãe cabo-verdiana, ela conta que cresceu ouvindo todos os estilos musicais do mundo, desde os enraizados em Bissau aos que estão semeados em diferentes continentes. Dessa experiência, ela cultivou o soul, mas sem esquecer dos tambores, do Korá  (uma harpa de 21 cordas amplamente utilizada na África Ocidental), do contrabaixo, do jazz, do ‘motown’!

– O amor é a base das minhas músicas. Amor de todos os tipos. Mesmo quando critico o sistema é por amor! É construtivo… Daí, passo pelos relacionamentos entre homem e mulher, o ‘clichê’ que não pode faltar, mas de uma maneira interventiva com base nos valores que, ao longo dos séculos, foram se perdendo em detrimento de coisas banais como ‘orgulho’ – compartilha Karyna.

O Brasil e o retorno a Bissau

Após receber uma bolsa de estudos do governo da Guiné-Bissau para cursar a faculdade de Comunicação no Brasil, Karyna se despediu temporariamente da sua terra natal. Por aqui, ela disse que aprendeu com os brasileiros a vencer a timidez. Ela também descobriu a Bossa Nova, uma de suas influências mais fortes, e aprendeu sobre Caetano, Chico, Gal Costa, Ivan Lins, Elis Regina e Tom Jobim.

-Tanta coisa boa que trago do Brasil… Eu voltei para servir um povo que precisa dos seus intelectuais. Tive que renunciar a um sonho de fazer uma carreira musical e de comunicação no Brasil para ir voltar à Guiné e contribuir, e foi a melhor coisa que fiz! A guerra tinha destruído minha casa, meus amigos não estavam mais lá, mas redescobri um país que não conhecia na minha infância e adolescência e tive a oportunidade de contribuir, trabalhando em instituições importantes como as rádios comunitárias no país – relembra Karyna.

Karyna Gomes – Divulgação

A guerra civil foi desencadeada por um golpe de Estado contra o presidente João Bernardo Vieira, liderado por Ansumane Mané, em junho de 1998. Confrontos entre as forças governamentais, apoiadas por estados vizinhos, e os rebeldes finalmente resultaram em um acordo de paz em novembro de 1998. Um surto posterior de breves combates, em maio de 1999, terminou com a queda de Vieira.

De volta à Bissau, Karyna se tornou madrinha do Observatório dos Direitos da Criança na Guiné-Bissau e passou a observar mais de perto os estilos que moldam seu país, como o rap guineense, o gumbê, o ‘Badju du Tina’, o ‘Nhaká’, o ‘Konkonabaca’ e o ‘Djambadon’ (que é a base do tema ‘Minjder di Balur’ no seu disco).

– A música que se faz na Guiné é, acima de tudo, alegre e para dançar, mas há uma característica que vem da música urbana da revolução. Na Guiné, também preservamos a nossa tradição através dos poemas cantados, que contam a evolução da nossa sociedade. Através do estímulo às indústrias criativas por parte do próprio governo, temos que registrar tudo isso para não perder tanta riqueza.

Para acompanhar a agenda de Karyna, clique aqui 

Por dentro da África