Coluna África em Crônica: “A coisa tá preta”, por Ademir Barros dos Santos

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Foto – Virginia Maria Yunes

Por Ademir Barros dos Santos, Por dentro da África

Sorocaba – Um homem lê o jornal; ao lado, sua mulher faz um tricozinho, enquanto o casal de filhos brinca a seus pés; ao fundo, uma bunda, enooooorme, mal se esconde numa saia feia, velha, comprida e multicolorida; o corpo gordo que a carrega, encrava-se entre o turbante branco, mal ajambrado, e dois roliços braços pretos, enfiados na pia…

Foi com esta ilustração estampada no material didático que, durante muito tempo, os professores, negros ou não, tiveram que ensinar suas crianças…!

Desde sempre e somente com a publicação, pelo governo Fernando Henrique, do Plano Nacional de Desenvolvimento Humano, e a posterior promulgação, já pelo governo Lula, da Lei 10639, que este material passou a ser mais acuradamente vigiado; e só a partir de então os autores das cenas explícitas de hierarquia elitista, que povoaram, durante muito, muito, muuuito tempo, charges, desenhos, caricaturas, crônicas, programas humorísticos e, especialmente, livros didáticos, ajustaram – mas aos poucos e à vista da já indignada crítica, geral e denunciadora – suas condutas racistas.

Depois, veio o vinte de novembro que, por reivindicação irrecorrível do próprio movimento negro, passou a ser feriado em diversas cidades brasileiras, abrindo aí a vitrine para que bocas negras – ou enegrecidas, mesmo que politicamente, apenas – pudessem denunciar e exigissem, dentre tantas outras soluções para suas inegáveis carências, a efetiva aplicação da Lei acima apontada.

Como resultado transverso, o mencionado texto legal foi atualizado. Mas, de fato, nada trouxe de novidade, exceto a inclusão do povo índio junto ao povo negro, no mesmo corpo de Lei, então apresentada como nova.

No meio tempo, alguma coisa efetivamente se fez: cotas e Prounis, embora duramente criticados – talvez até mais fortemente nas academias, palco onde deveriam desenvolver-se – sobreviveram a seus algozes e produziram significativos – embora insuficientes – efeitos: e a população descendente de africanos escravizados realmente cresceu, nos espaços escolares.

Mas, mesmo com maior número de bancos ocupados nas academias brasileiras, e malgrado a vigência de Leis pertinentes e seus regulamentos, a história negra – quer por negros, quer para negros – continua a ser negligenciada; ou, quando não o é, vem truncada e mal contada: onde, nos livros, estão Luísa Mahin e seu filho Luís Gama? Quem, na academia, discorre sobre o Quilombo do Jabaquara? Que, aliás, foi comandado por Quintino de Lacerda, primeiro vereador negro de Santos, mas que, embora decisivo no processo abolicionista, ainda permanece quase ausente nos livros didáticos! Onde o quilombo de Teresa do Quariteré? E os demais quilombos? Quem será o Preto Pio?

Talvez já estas ausências bastassem para demonstrar as carências do ensino das africanidades; afinal, para que ir mais além, lembrando que a abolição da escravatura, de fato, foi iniciada por mãos negras? Ou que já em 25 de março de 1884, a cidade cearense, hoje chamada, por isto mesmo, Redenção, bloqueou o embarque de escravos, possivelmente disparando o processo que, após frutificar no Amazonas e Rio Grande do Sul, culminou no 13 de maio de 1888?

Pois bem: se nada disto consta dos livros que acompanham pequenos negros à escola, como lhes pedir que se sintam bem na pele preta que os reveste? Afinal, quem pode sentir-se confortavelmente instalado na própria história, se esta só lhe conta que seus ascendentes foram escravos porque coniventes com a escravidão, da qual partilharam como atores secundários, porém ativos e coadjuvantes?

Mais grave ainda: se a história dos reinos africanos, bem como a parceria do continente negro no desenvolvimento da sociedade humana, não consta do conhecimento dos professores encarregados de ensiná-las, como se há de cumprir a Lei?

Daí a inevitável pergunta, que não encontra qualquer resposta: se não os professores, quem a cumprirá?

É fato que muitos estados e municípios vêm desenvolvendo, talvez sós, o esforço de complementar a formação de seus professores e, para tanto, apresentam oficinas, cursos, seminários, palestras, etc., voltados à difusão do conhecimento da cultura, história, sociedade e demais aspectos da matriz africana; mas também é fato que poucos daqueles que estão dispostos a conduzir tal processo, conseguiram obter preparo suficiente para tanto – o que não é de se admirar, à vista do material de pesquisa disponível, notoriamente esparso, raro, ralo, tão disperso, sempre escasso…!

Como decorrência, ao mesmo tempo em que tão louvável esforço se espraia, cursos superiores de história, sociologia, pedagogia e similares, que deveriam, já agora, formar professores aptos à aplicação do que dispõe a Lei, continuam a graduá-los sem acesso aos mínimos ecos de africanidades: daí que o tal louvável esforço, diluído, de fato se espraia; mas se esvai.

O fato é que os novos ensinadores, no mais das vezes, ainda vêm sendo formados sem sequer saber que a África, mais que um país, é um continente; e que abriga, em seus mais de 30.000.000 de km2 e em mais de 50 países, inúmeras e diversas culturas e etnias!

Mais que isto: que a atual divisão geopolítica é fruto espúrio de ocupações e decisões alheias, e o presente resultado, ainda instável, não tem, sequer, sessenta anos de história!

O maior temor, afinal, é que o volume de novos ensinadores que, no fundo, no fundo e em grande parte, só partilhou conhecimento sobre a África e a diáspora de forma notoriamente insuficiente, cubra e encubra, com folga, o resultado de qualquer esforço de reciclagem que se faça em extensões para além da graduação.

Portanto, parece legítimo temer-se pela consolidação do mais grave fato: a perpetuação do desconhecimento, com ilhas de boa formação diluídas na ignorância geral.

Se assim for, e infelizmente, não será exagero afirmar-se, pelo menos quanto à educação: para o povo negro, a “coisa” ´tá preta.

* Coordenador da Câmara de Preservação Cultural do

Núcleo de Cultura Afro-Brasileira – Nucab –

da Universidade de Sorocaba – UNISO