Recursos minerais nos Grandes Lagos: a relação entre Angola e República Democrática do Congo

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Foto: ONU – UN Jobs

Natalia da Luz, Por dentro da África

Rio – A riqueza mineral que brota do solo africano vai além das reservas de diamante, ouro, bauxita, petróleo, coltan… A lista é vasta, e a exploração de toda essa riqueza tem implicações e consequências para o meio ambiente, governos e comunidades como, por exemplo, para a Região dos Grandes Lagos, área de intensa disputa de reservas minerais. Nesta parte da África (que abrange países como Burundi, Ruanda, República Democrática do Congo, Uganda, Congo, Tanzânia e Quênia), é frequente a atuação de grupos armados que, defendendo interesses de governos e empresas multinanacionais ocidentais, minam o território com violência impedindo a concretização da autoridade do Estado em alguns casos.

Em entrevista ao Por Dentro da África, o angolano Domingos da Cruz, que atuou como consultor do Observatório da África Austral para os Recursos Naturais e participou dos seminários sobre “Exploração Racional e não Conflituosa dos Recursos Naturais na Região dos Grandes Lagos” (realizados na República Democrática do Congo (RDC) no mês de maio e em Uganda no mês de outubro), destaca a relação entre a RDC e Angola na exploração de recursos nas zonas de interesses transfronteiriça comum que enriquece, mas também fragiliza partes da região.

Domingos da Cruz

– Os dois países passaram por guerras civis e guerrilhas sustentadas por recursos naturais e a mão de algumas potências ocidentais com interesses geoestratégicos conectados com chefes locais, assim como indivíduos do centro, que conduzem grandes empresas multi e transnacionais – conta Domingos, mestre em Direitos Humanos e autor do livro África e Direitos Humanos, lembrando que Angola e a RDC são países vizinhos, cujos povos, especialmente os que partilham as zonas fronteiriças com mais 2500 Km como habitat, têm culturas e costumes semelhantes.

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Angola terminou a guerra civil e alcançou a “paz relativa” há 12 anos. Por sua vez, na RDC, em dezembro de 2013, o governo celebrou um acordo que viabilizou o cessar-fogo com o grupo armado M23, que pôs fim às hostilidades que infundiam o drama humano, ético, ecológico e outras consequências possíveis que uma guerra pode trazer, particularmente no leste do país, relacionadas aos recursos minerais e à fauna.

– A conferência deste ano permitiu perceber que existem acordos sobre o assunto, mas não são respeitados. Da parte angolana, ficou claro o desinteresse pela questão, uma vez que as autoridades governamentais convidadas para discutirem o assunto com a sociedade civil dos dois países não estiveram presentes –  disse Domingos, que coleciona seis livros sobre política e sociedade africanas.

Mining for coltan in the DRC, one of the main minerals implicated in the violence therePhoto © www.sourcingnetwork.org

De acordo com o relatório Minerals and Áfricas Development 2011, produzido pela Comissão Econômica para a África, mais da metade dos países do continente considera a mineração como uma importante atividade econômica. Alguns volumes de minerais produzidos e exportados pela África também são significativos para o consumo industrial mundial, tais como cobre e minério de ferro.

Em um breve retorno ao século XIX, o documento destaca que, apesar dos muitos anos de contato direto com os comerciantes europeus, a maioria das sociedades africanas produzia o seu próprio ferro, e seus produtos eram obtidos de comunidades vizinhas por meio do comércio local. Apesar da concorrência de importações europeias, a produção de ferro local sobreviveu até o início do século XX, em algumas partes do continente. Foi o caso na Yatenga, em Burkina Faso, onde, em 1904, havia cerca de 1.500 fornos de fundição em produção.

De acordo com o relatório, a demanda por commodities minerais aumentou drasticamente desde a virada do século. A produção mundial de aço bruto subiu 1% ao ano, de 1990 a 2000,e 6,8 % ao ano entre 2000 e 2007. Essa corrida pelos recursos minerais compromete o meio ambiente, mas, principalmente, a sociedade que está vulnerável.

Situação dos Grandes Lagos

A República Democrática do Congo (RDC) possui, pelo menos, 64% das reservas mundiais de coltan (mistura dos minerais columbite e tantalite que é usada, principalmente, na maioria dos eletrônicos portáteis). Nas fronteiras desse país, milícias, rebeldes, empresas de exploração de minérios e governos se encontram em uma guerra que fere a identidade e a dignidade dos congoleses e seus vizinhos. A situação de confrontos na República Democrática do Congo não é recente. A nação rica em minérios e que faz fronteira com nove países foi cenário de um dos modelos mais cruéis de colonização.

Foto: UN News

Usado como propriedade de Leopoldo II (o segundo rei belga), o país fornecia a borracha a partir do trabalho de escravos africanos e, como castigo por não alcançarem a cota estipulada pelo rei, tinham mãos e pés mutilados. A ONU apresenta estimativas desconcertantes como a de que já morreram milhões de pessoas na disputa pelo “ouro azul”, além do impressionante faturamento de mais de US$250 milhões que teve o Exército de Ruanda no comércio do mineral.

Em dezembro de 2010, os chefes de Estado e de Governo da CIRGL (Conferência Internacional sobre a Região dos Grandes Lagos) – abrange Angola, Burundi, República Centro Africano, República Democrática do Congo, Quênia, República do Congo , Ruanda, Sudão, República Unida da Tanzânia, Uganda e Zâmbia) – assinaram a Declaração de Lusaka. A partir de um mecanismo de rastreamento e certificação, o compromisso procura abordar a exploração ilegal dos recursos naturais na região e sua ligação com a proliferação de grupos armados. A declaração observa várias iniciativas de transparência e de certificação no setor de minerais, entre eles o Processo de Kimberley, e enfatiza a necessidade de uma abordagem regional no combate à exploração ilegal dos recursos naturais.

Acompanhe a entrevista abaixo:

Extração de diamante – Lunda, Angola

Por dentro da África – O fato de a maior exploração de diamante de Angola, em Lunda Norte, ser perto da província congolesa de Bandundu é motivo de tensão/conflito no processo de exploração desses diamantes?

DC – Nas zonas de extração de diamante, o problema centra-se no fato de haver indeterminação nos limites fronteiriços e, consequentemente, a acusação mútua de violação dos territórios onde está este recurso. Mas outro fator de tensão é a exploração artesanal e ilegal de que são acusados os cidadãos da RDC pelo governo angolano.

PDA- De acordo com o Banco Central da RDC, a produção de diamante vem caindo desde 2006. Essa queda se deve ao aumento da produção de Angola na região fronteiriça? Em 2005, Angola fez a primeira fábrica para lapidação da pedra. Isso aumentou a produção?

DC – Na realidade, a crise econômica/financeira mundial causou queda na produção de diamante, também em Angola. Alguns projetos foram suspensos, mas começaram a ser retomados em 2013. Quanto às causas da queda de produção na RDC, não tenho certeza, mas posso inferir que seja por causa da instabilidade política e militar que inviabiliza a maximização do investimento privado interno e estrangeiro para promover o aumento da produção. Esta inferência deve-se ao fato de haver um princípio geral, segundo o qual, a ausência de segurança e paz afugenta e desistimula o investimento por causa das incertezas.

PDA – Em “Diamantes de Sangue: Corrupção e Tortura em Angola”, o autor angolano Rafael Marques faz uma denúncia gravíssima sobre a exploração e a condição de trabalho dos mineradores. Como essa obra repercutiu nas negociações do país?

Capa do livro Diamantes de Sangue

DC – Pelo que sei a obra não teve influência nesta questão referente ao desentendimento político-diplomático entre Angola e RDC, uma vez que ela centrou-se noutro ângulo de abordagem. Mas teve repercussões amplas noutro plano, uma vez que a pesquisa, extração e comercialização de diamante são multissetoriais. De forma sintética, gostaria de informar que foram abertos 11 processos contra o autor do livro, por vários generais angolanos envolvidos na extração de diamantes, entre outras implicações políticas para a imagem do presidente, sua filha (a mais rica do continente africano) e seu regime.

PDA – Como é dividida hoje a extração de diamantes de Angola? Há empresas do Brasil, Israel, Austrália e Russia. Como elas “compartilham” essa riqueza?

DC – Como é repartido exatamente não sei. Mas há uma garantia absoluta de que o dono dos diamantes é o presidente da República, que decide a quem conceder licença para extração das pedras preciosas, e, em cada projeto, a filha Isabel dos Santos e outros membros da família devem ser parte. Assim impõe o príncipe.

PDA – Em relação à exploração de petróleo, Angola é mais privilegiada do que RDC nessa região fronteiriça?RDC mapa

DC – Historicamente não há dúvidas de que Angola é a mais beneficiada pelo petróleo da zona transfronteiriça marítima, uma vez que sempre explorou sozinha. Mas depois das reivindicações da RDC, em 2007, foram acordadas a exploração conjunta e divisão de 50% dos lucros para cada país. Mas não há dúvidas que do ponto de vista geopolítico e geoestratégico, Angola tem usado melhor a influência do hidrocarboneto na relação de poder com o mundo, em estrito benefício dos governantes e seus “próximos”, contra os interesses nacionais e dos cidadãos.

PDA – A região entre a República Democrática do Congo, Uganda, Ruanda, República Centro Africana e Burundi vive em um conflito permanente, onde o Estado, muitas vezes, não consegue chegar. A riqueza mineral transforma a região em um campo de batalha comandado por milícias e faz milhares de vítimas. Como essa tensão atinge Angola?

DC – Esta tensão atinge Angola em diversas dimensões. Por um lado, a situação da RDC leva muita gente a refugiar-se em Angola, mas em condições lastimáveis, uma vez que Angola não trata os refugiados com dignidade que merecem, conforme as diretrizes do direito internacional dos refugiados e humanitário. Mas se os angolanos são humilhados, que tratamento esperar para um refugiado?

No plano diplomático, Angola tem tentado usar o poder dos petrodólares e dos diamantes para influenciar na resolução de conflitos nesta Região dos Grandes Lagos e não só. Recentemente, Angola disponibilizou 10 milhões de dólares para a República Centro-Africana, para fazer face ao funcionamento do Estado, a propósito da situação atual. No quadro da ONU enviará também um contingente militar para o referido país.

Angola desembolsou, nos últimos três anos, mais de 35 mil milhões de Kz (360 milhões de dólares e 260,2 milhões de euros) no apoio a algumas nações africanas em dificuldade. O dinheiro tem sido outorgado em forma de doação ou abertura de linhas de crédito. Além da República Centro Africana (RCA), Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Zimbábue beneficiaram-se do dinheiro angolano. Mas tudo isto não passa de operação de charme de uma elite sedenta de influência internacional, quando os hospitais públicos em Angola carecem de material “gastável” e antibióticos comuns.

Small-scale gold miners in Obuasi, Ghana – Photograph: Panos / George Osodi

No plano militar, Angola envia soldados e todos meios logísticos para conflitos como o da RDC. Fora desta região, Angola procede do mesmo jeito. O país enviou contingente militar à Guiné Bissau (2012) e à Costa do Marfim (2010) sem qualquer consulta ao Parlamento, para não falar do povo: mero escravo do príncipe. Finalmente, a instabilidade na região inviabiliza a integração destes países, particularmente no âmbito econômico e o intercâmbio entre os povos.

PDA – A República Democrática do Congo é um país de riqueza ainda imensurável de diferentes minerais. Essa particularidade faz dele alvo de governos internacionais, grupos rebeldes, milícias e do próprio Estado. Com um livro dedicado aos Direitos Humanos na África, qual a sua opinião sobre a omissão do governo(s) e sua incapacidade de lidar com as violações de direitos humanos registradas atualmente?

DC – Parece-me que a “conivência” da elite política congolesa com estes grupos que se apoderam das riquezas é uma das explicações possíveis, para tolerarem tanta barbárie. Simplesmente beneficiam-se deste caos. Uma desordem institucional que põe em causa direitos humanos nega a dignidade e o direito ao desenvolvimento do povo da RDC, mas os políticos se beneficiam de centenas de milhares de dólares. Na RDC, há literalmente caos organizado, em que a elite política é a responsável número zero!

Por dentro da África