Levanta-te e anda!
Duas palavras sobre o passado,
o presente e o futuro dos deficientes na África
João Vicente Ganzarolli de Oliveira*
A vida é uma tentativa de ficar em pé.
Carmelino Souza Vieira
Diretor do Instituto
Benjamin Constant
de 1994 a 2002
Resumo
Por que há tantas crianças cegas em Ruanda? Por que a deficiência é ainda hoje um flagelo e um estigma em terras africanas? Qual será o legado desta geração para o deficiente do ano 2050, quando a população da Terra deverá atingir a cifra de dez bilhões? Este artigo concentra-se na atuação de missionários europeus e do seu esforço para combater a deficiência na África. Deixando de lado os clichês e a correção política, é-se obrigado a admitir que a presença ocidental na África tem trazido benefícios vitais não só para os deficientes, mas para a população africana em geral.
Quem conta é o missionário catalão Xavier Morell i Sauch, que passou vários anos em Ruanda. O filho de um pigmeu morrera atropelado. Após receber certa quantia como indenização, o pai decidiu colocar outro de seus filhos na estrada para que este também fosse atropelado, e, assim, lhe rendesse uma nova quantia.[1] Isso que lemos no livro auto-biográfico El sentit d’una vida (O sentido de uma vida) está longe de ser um fato isolado; muitos casos parecidos permitem concluir que se trata de um costume próprio da África. É comum que a vida de um homem valha pouco no continente que viu o ser humano nascer. Menos ainda tende a ser o valor da vida dos deficientes físicos e dos pigmeus, que para muitos africanos nem sequer fazem parte da espécie humana.
Nenhuma sociedade é indiferente à deficiência que atinge seus membros; poderá aceitá-la ou rechaçá-la, mas nunca ignorá-la. A segregação do deficiente não tem nenhum fundamento moral e nem biológico: depende do arbítrio cultural e por isso seu território e sua abrangência são imprecisos. Entre os budistas existe a prerrogativa de melhorar a sorte dos mais vulneráveis (é como tivessem lido Nietzsche e Rousseau, para adotar justamente o contrário do que eles recomendam nesses casos[2]), grupo no qual se incluem os cegos e demais deficientes.
No começo da Idade Média, São Gregório Magno escreveu sobre um italiano de nome Sérvulo, a quem a doença “havia reduzido a um estado lastimável: passada a sua juventude, ficou paralítico de todos os seus membros”.[3] Havendo aceito a provação, Sérvulo dedicava-se a meditar sobre os sofrimentos de Cristo, e isso “de tal maneira que não se queixava jamais”.[4] “Conhecido por todos os moradores de Roma”[5], teve amigos e continua a ser admirado em nossa época.[6]
Fala-se aqui de costumes e atitudes que escapam das regras gerais; o comum, ao longo da história da humanidade, tem sido a discriminação do deficiente. O assunto já comparece num dos escritos mais antigos que chegaram a nós. O Livro da sabedoria, atribuído ao egípcio Amenemope, aconselha que “não rias do cego, não ridicularizes o anão e não faças mal ao paralítico”.[7] Se tais procedimentos mereceram a atenção do sábio, certamente é porque eles ocorriam com freqüência no Egito dos faraós.
Em muitos países africanos da atualidade, faltam carrinhos de bebê – e ainda que houvesse, seria difícil comprá-los. As mães costumam levar os filhos pequenos amarrados nas costas, deixando-os assim à mercê dos mosquitos, que atacam os olhos, trazendo doenças causadoras da cegueira ou até mesmo destruindo diretamente a córnea. Com freqüência, a cegueira decorre de problemas congênitos, da falta de higiene e da má nutrição. Isso responde à pergunta feita a si mesmo pelo padre Xavier Morell i Sauch, ao deparar com tantas crianças cegas em Ruanda: “Per què tants nens cecs?”[8] Estamos diante de um quadro tipicamente africano e que mudou pouquíssimo durante milênios.
No Egito faraônico as doenças oculares eram tidas como “um verdadeiro flagelo nacional”; as causas eram as mesmas atuantes hoje em dia, notadamente a falta de higiene e de proteção contra os mosquitos. Se atualmente a eliminação dos deficientes não é mais uma prática generalizada em solo africano, isso se deve aos esforços de médicos e missionários europeus: David Livingstone, Albert Schweitzer e tantos outros que fizeram da África a sua pátria.[9] Não deve ser perdido de vista que muitos desses missionários foram mártires; que pensemos no catalão medieval Raimundo Lúlio, apedrejado por muçulmanos argelinos, e no francês Charles de Foucauld, morto a tiros por beduínos islamitas da mesma Argélia.[10] Defensor incansável dos deficientes, dos escravos e dos desfavorecidos em geral, Charles de Foucauld acreditava que todos os homens eram livres para escolher o seu próprio destino.
No Magreb, que escolheu como pátria e que se tornou seu túmulo, essa crença incomodou demais.[11] Mártir da própria fama e da banalização imposta pela mídia, a ex-princesa Diana (1961-1997) precisa ser lembrada por seu esforço pela desativação das minas em solo africano, bem como pelo fim da sua indústria de fabricação. Decepcionante, o filme Diana (2013), de Oliver Hirschbiegel, concentra-se em aspectos pessoais e escandalosos da vida de Lady Di. A interpretação caricatural de Naomi Watts transmite a idéia de uma adolescente irresponsável. Da atuação corajosa e pioneira da inglesa Diana Frances Spencerem defesa das vítimas de amputações causadas pelas minas, pouquíssimo se fala no filme. Peter Bradshaw, crítico do Guardian, considerou o filme uma “segunda morte horrível” para Diana.[12]
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[1] “a aquell bon home no se li acudí altra cosa que exposar un altre dels seus fills a la circulació rodada per a veure si així l’atropellaven, podia cobrar més diners!” (Xavier Morell i Sauch. El sentit d’una vida: un monjo atípic, Barcelona, Publicacions de l’Abadia de Montserrat, 2007, p. 161).
[2] Cf. F. Nietzsche. Wille zur Macht, Stuttgart, Kröner, 1952, par. 734; e J.J. Rousseau. Emílio (trad. Sérgio Milliet), 3ª ed., São Paulo/Rio de Janeiro, Difel, 1979, p. 31.
[3] Apud L’Abbé L. Jaud. Vies des Saints, Paris, Tours Maison Mame, 1933, p. 555.
[4] Apud Ibidem.
[5] Apud Ibidem.
[6] Eis o que escreveu o Abade L. Jaud, já no século XX: “São Sérvulo [falecido no ano 670] foi um perfeito modelo de aceitação da vontade divina; seria difícil apresentar um exemplo mais consolador e edificante às pessoas atingidas pela pobreza, pelas doenças e as outras misérias da vida” (Ibidem).
[7] Apud Carl Grimberg. História da civilização (trad. Jorge de Macedo), Lisboa, Europa-América, 1965, t. I, p. 131.
[8] El sentit d’una vida: un monjo atípic, op. cit., p. 199.
[9] Um pouco menos conhecido do que o inglês Livingstone (1813-1873), o alemão Schweitzer (1875-1965), médico extraordinário, encontrou tempo para brilhar como protetor dos africanos (notadamente gaboneses), teólogo, filósofo, músico e escritor. Foi laureado meritoriamente com o Prêmio Nobel da Paz em 1952. Há quase cem anos, por ocasião do fim da Primeira Guerra Mundial, Albert Schweitzer declarava: “Começaremos novamente. Devemos dirigir nosso olhar para a humanidade.” (apud http://pt.wikipedia.org/wiki/Albert_Schweitzer).
[10] Seu assassinato, em 1916, pode ser visto como ponto de convergência de incontáveis outros, cometidos por muçulmanos contra cristãos, desde a islamização do Oriente Médio e do norte da África, ocorrida entre os séculos VII e VIII. Foi prelúdio também para as grandes matanças do século XX (e.g., o genocídio dos armênios, cometido pelos turcos) e do século XXI. Apenas em 2012, mais de cem mil cristãos foram assassinados em países islâmicos, genocídio que não teve impacto na mídia e que muitas autoridades eclesiásticas parecem ignorar (cf. Reinaldo Azevedo.“Os mortos do Egito sem direito nem mesmo à notícia. Ou: Islamofilia da imprensa ocidental esconde os cadáveres dos cristãos”, in http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/tag/islamofobia/). Esperemos que o assassinato recente do padre jesuíta holandês Frans van der Lugt faça com que o Vaticano e a mídia em grande escala finalmente despertem para o desamparo dos cristãos em meio ao fogo cruzado das facções islamitas que brigam pelo poder durante esta longa “primavera árabe” (cf. http://www.thewire.com/global/2014/04/priest-who-refused-to-leave-syria-assassinated-in-homs/360299/).
[11] Cf. Michel Carrouges. Charles de Foucauld, explorateur mystique, Paris, Ed. du Cerf, 1954, p. 223 et passim.
[12] http://www.theguardian.com/film/2013/sep/05/diana-review. Não foi a primeira e nem a última vez em que a mídia pôs uma lente de aumento sobre as fraquezas pessoais (quem não as tem?) de uma grande personalidade britânica, obscurecendo suas muitas virtudes e massacrando-a psicologicamente diante de um público sempre ávido de atirar a primeira pedra. Em 1963, jornais de todo o mundo dedicaram letras garrafais para denunciar a infidelidade conjugal do então ministro inglês John Profumo, veterano da Segunda Guerra, que foi obrigado a demitir-se e desistir da vida pública. A mídia só desviou o foco quando um alvo mais atrativo surgiu: os Beatles, reestruturados após a estadia em Hamburgo, voltavam ao solo inglês e aconteciam para o resto do mundo. Profumo foi esquecido. Por ocasião da sua morte, em 2006, quase nada se falou e escreveu que, após o vilipêndio e a humilhação sofridos em 1963, Profumo passou a trabalhar como voluntário do Toynbee Hall, lavando banheiros, e aproveitando o pouco de prestígio que lhe restara para arrecadar fundos caritativos, promovendo com eles a integração social de ingleses e estrangeiros pobres em solo britânico. A esposa o apoiou, a rainha da Inglaterra homenageou-o em 1975 e a ex-primeira ministra Margareth Thatcher (ela mesma vilipendiada num filme recente [The Iron Lady, 2011]) nunca deixou de admirá-lo. Para a maior parte da mídia, Profumo morrera em 1963 (cf. http://noticias.uol.com.br/ultnot/afp/2006/03/10/ult34u149629.jhtm; e http://en.wikipedia.org/wiki/John_Profumo#Later_life).
Por dentro da África