Sudanesa é condenada à morte por ser cristã. Sentença estimula o debate sobre a Sharia

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Meriam e o marido – Divulgação

Natalia da Luz, Por dentro da África

Rio – O  direito de praticar a crença ou a religião que o cidadão desejar está inserido no conceito de liberdade. No Sudão, essa não parece ser uma escolha respeitada. Nesta semana, um tribunal de Cartum (capital do Sudão) condenou Mariam Yehya Ibrahim, uma sudanesa de 27 anos, por ser cristã. Mãe de um menino de 1 ano e meio e grávida de 8 meses, Meriam afirma que é cristã, mas o tribunal insiste que ela é de origem muçulmana e que teria renegado a sua religião.

– Mariam é católica, sempre foi cristã. Ela não sabe absolutamente nada sobre o Islamismo. O governo a pressionou e chegou a essa sentença absurda por conta da Sharia – disse em entrevista ao Por dentro da África a ativista sudanesa Mai Shutta, que mobiliza campanhas e protestos sobre o caso.

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Mulheres cristãs no Sudão – Foto: maghrebchristians

Mai explicou que a Sharia (código de leis islâmicas baseadas no Alcorão), que vigora no país, não reconhece o casamento de uma muçulmana com um cristão; que por isso, o governo a condenou a 100 chibatadas pelo crime de “adultério” (por ter casado com um cristão). O tribunal deu a ela até a última quinta-feira para “retratar a fé”, algo que Mariam se recusou a fazer. Por esse “crime” (que o Tribunal chamou de apostasia – abandono ou negação da fé. Lembrando que Mariam nunca foi muçulmana), ela foi condenada à morte por enforcamento.

Casada com um cristão, Mariam é filha de pai muçulmano e mãe católica, que a criou sozinha como cristã. No entanto, como o seu pai era muçulmano, os tribunais a consideram muçulmana, o que significa que o seu casamento com um homem não-muçulmano é nulo.

Meriam, o marido e o filho de 18 meses – Divulgação

– De acordo com a lei, se eu for muçulmana, eu não poderei me casar com um homem cristão. A família não aceita. Seria uma vergonha para a família. Mas um homem muçulmano pode se casar com uma mulher cristã – explicou a ativista, que vive na Alemanha por conta da perseguição do governo sudanês.

No país, a religião predominante é o islamismo. A Sharia, de maneira geral, tem sido incorporada aos sistemas políticos de forma integral em países como Arábia Saudita, Yemen, Irã e Paquistão.

– Por que o homem pode se casar com uma mulher cristã e por que a sharia precisa ser implementada, se nós não acreditamos nela? Sem dúvida, é um momento para repensarmos. Ela foi implementada na década de 80 e reforçada depois – relembrou Mai.

Em entrevista à imprensa, o advogado de Mariam, Mohamed Jar Elnabi, disse que a denúncia partiu de um irmão da ré, que teria ficado furioso ao saber do casamento dela com um cristão, em 2011. Presa após a sentença, o advogado chegou a fazer um pedido para transferi-la para um hospital particular, mas não obteve sucesso.

Lei Islâmica no Sudão

sudao mapaSudão faz fronteira com o Egito, Arábia Saudita, Eritreia, Etiópia,  República Centro-Africana, Chade, Líbia e Sudão do Sul, país criado em 2011 após referendo que decidiu pelo desmembramento do sul do território, que antes pertencia ao Sudão. Sua Capital é Cartum e possui uma população de aproximadamente 37 milhões.

Independente da Inglaterra desde 1956, o país é uma república autoritária onde o poder está nas mãos do presidente Omar Hasan Ahmad al-Bashir. Ele e o seu partido estão comandam o país desde o golpe militar de 30 de Junho de 1989.

Radicalização da Sharia após o desmembramento do país (criação do Sudão do Sul)

Antes do referendo que dividiu o país, o presidente Omar al-Bashir (acusado de crimes de genocídio em Darfur), anunciou um reforço da lei islâmica no Sudão. “Em caso de secessão do Sul, vamos mudar a Constituição. Não estará mais em questão a diversidade cultural ou étnica, a única fonte da Constituição será a sharia e o árabe a única língua oficial”, afirmou Bashir, em discurso transmitido na televisão nacional.

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Protestos no Sudão – Divulgação

– Muitas pessoas não querem saber sobre isso, mas o governo colocou mais pressão na sharia nos últimos anos, porque ele acreditava que ela não era aplicada com profundidade (com o rigor) que deveria – contou Mai, que deixou o país após ser presa sete vezes.

Por meio de amigos ativistas, Mai mantém contato com a família da vítima, que, segundo ela, está exausta após tantas tentativas de questionar a sentença.

– No Sudão, você não é livre para ter a sua religião. O governo escolhe por você. Se você é filho de muçulmano, você tem que seguir a religião da família. Os direitos das mulheres são destruídos no país por conta da religião. Eles usam a religião para fazer política. Esse extremismo é nocivo demais…

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Estudantes muçulmanas no Sudão – Foto: Acnuk

Mai destaca que muitas pessoas estão do lado de Mariam e que a pressão internacional pode sim evitar que a sentença seja aplicada, principalmente levando-se em conta que ela está prestes a dar à luz. Com repercussão mundial, o coro a favor da liberdade de Meriam vem aumentando.

– Hoje, muitas pessoas estão confusas no Sudão. Por que a Corte decidiu enforcá-la? Nós nascemos livres, e o governo não deveria controlar tudo. As mulheres não têm voz nas ruas do país. A voz, a roupa, os desejos, tudo relacionado às mulheres é uma vergonha para eles. Nos tentamos quebrar esse ciclo de medo!

Condenação de um dos maiores ativistas contra a Sharia

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Mohamed Taha – Divulgação

Ustaz Mahmoud Mohammed Taha foi um pensador sudanês religioso e um grande opositor da Sharia, motivo pelo qual foi condenado à morte em 1985, aos 76 anos.

Taha nasceu em Ruffaa, a 150 km ao sul de Cartum, capital do Sudão. Foi educado como engenheiro civil em uma universidade britânica, antes da independência do Sudão. Em 1945, fundou um grupo político anti-monárquico e foi duas vezes preso pelas autoridades britânicas.

Ele tinha ideias revolucionárias em oposição à Sharia e por isso defendia a reformulação da Constituição para conciliar a“necessidade do indivíduo para a liberdade absoluta com a necessidade da comunidade para toda a justiça social.” 

Protesto contra Bashir, no Sudão – Foto: CPJ.ORG

Taha formou um pequeno grupo conhecido como os Irmãos Republicanos, para avançar em sua causa, mas em 05 de janeiro de 1985, foi preso por distribuir panfletos pedindo o fim da Sharia no Sudão.

O julgamento durou duas horas com réus e, no dia seguinte, ele foi condenado à morte junto com outros quatro seguidores. O governo proibiu que suas opiniões heterodoxas sobre o Islã fossem discutidas em público com a justificativa de que iria “criar tumulto religioso”.

Ele foi executado em 18 de janeiro, apesar de milhares de manifestantes contrários à sentença, e o  corpo foi enterrado secretamente.

– Taha era um religioso que não acreditava na aplicação da Sharia como a lei suprema do país. A sua morte foi um momento triste para a Justiça do Sudão – destaca Mai.

Mohamed Taha - Divulgação
Mohamed Taha – Divulgação

Em 1983, o presidente Jaafar Nimeyri proclamou Estado de Emergência, onde o país seria governado pelas leis da Sharia. Em poucas semanas, foi declarada a aplicabilidade imediata da lei penal.

De acordo com o estudo de 2010 Criminal Law and Justice in Sudan, escrito por Amin M. Medani, as punições rigorosas, chamadas de “As Leis de Setembro” relativas ao mês de setembro de 1983, foram aplicadas de forma mais rígida daquele momento em diante. Sob o Estado de Emergência, juizados especiais foram estabelecidos. A polícia e as forças de segurança perseguiram homens e mulheres em suas casas, clubes, carros com punições extremamente severas de morte, prisão, amputação e flagelação. Rádio, TV e jornais foram rápidos em publicar os nomes completos de pessoas condenadas e punidas, homens e mulheres.

Em 1991, já com o novo regime de Bashir (que tomou posse em 1989), o país confirmou a sua orientação islâmica.

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O presidente Bashir na ONU – Foto: ONU

Expectativa

– Esse país é muito complicado, temos conflitos com direitos das mulheres, étnicos, religiosos, há sempre algo. Por isso, não adianta tantas reuniões de líderes e especialistas de todo o mundo para falarem sobre o Sudão. Não precisamos de filósofos, mas de coerência – disse Mai, ressaltando que os sudaneses não precisam de dinheiro da Europa, pois é essa Europa (França e Alemanha, por exemplo) que envia armas para a guerra em seu país.

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Campanha da Anistia Internacional

A ativista afirmou que está aumentando a mobilização em nome da liberdade de Mariam e de outras mulheres do seu país. Organizações de direitos humanos de todo o mundo voltaram as suas atenções para o Sudão. Em comunicado oficial, a Anistia Internacional disse que o fato de uma mulher ser condenada à morte por sua opção religiosa e açoitamento por ser casada com um homem de uma religião supostamente diferente é abominável.

– Precisamos que a mídia se concentre em fazer um trabalho claro, completo, que explique ou tente explicar a situação no Sudão e em outros países africanos. A mídia pode ajudar quando aborda de forma comprometida sobre essas realidades.

Confira algumas petições contra essa sentença: The petition e Change

Por dentro da África