Kaian Lam, Por dentro da África*
Este ensaio partilha algumas reflexões da autora sobre a tradução de temas alimentares contidos na tradição oral cabo-verdiana para o chinês. O objetivo principal é elucidar as peculiaridades de certos aspetos da cultura cabo-verdiana através da tradução, tendo em conta as lições de Apter (2006, 2013) sobre a intraduzibilidade.
O arroz é a alma de muitas expressões chinesas acerca da alimentação, mas a situação é diferente em Cabo Verde. A base alimentar tradicional deste país africano é o milho em todas as suas variedades. O arroz é de importação estrangeira relativamente recente.
Como exemplo, kume (comer em kabuverdianu) não é 吃饭 (comer arroz em chinês), almosu (almoço em kabuverdianu) não é 午饭 (arroz para o almoço em chinês) e kumida (comida em kabuverdianu) não é 饭菜 (uma refeição de arroz e legumes em chinês).
Os resultados preliminares aqui apresentados são acidentais. Isso porque o exercício de tradução foi inicialmente destinado a recolher elementos úteis para uma tese de doutorado sobre a alimentação, cultura e política de Cabo Verde, tendo em conta que a tradição oral é útil para explorar a história popular e que é importante escutar os subalternos (Vansina, 1985).
É desafiante traduzir o kabuverdianu para o chinês corretamente porque é necessário se afastar para compreender as razões do bloqueio mental. O trabalho está organizado em três partes. No início, apresenta as justificações para fazer a ponte entre dois mundos culturais muito distantes. Depois, estabelece as ligações entre a história, tradição oral e alimentação no contexto cabo-verdiano. Por fim, debruça-se sobre as cenas históricas da agricultura, cozinha e partilha de refeições, tal como descritas na tradição oral cabo-verdiana. A conclusão resume as dificuldades de tradução e salienta que a alimentação estrutura as relações interpessoais.
Vivemos num mundo que nos ensina a aprender línguas porque só assim podemos nos comunicar com os outros. E com línguas estrangeiras, podemos viajar pelo Globo e alargar os nossos horizontes. No entanto, o conceito popular de aprendizagem de línguas estrangeiras é problemático. Na Ásia, isso quer dizer ter aulas de inglês. No Ocidente, os alunos geralmente escolhem entre o francês, espanhol, italiano, etc. É economicamente mais viável estudar estas línguas porque há muitos cursos para escolher, uma grande oferta de professores nativos, livros e outros materiais, colegas com quem praticar, e testes de nível padronizados.
Sendo chinesa, comecei a aprender inglês desde cedo, acrescentei o português no meu primeiro curso universitário e o francês no segundo. A alegria pura da aprendizagem de línguas desapareceu quando percebi que existem demasiadas pessoas como eu. Há alemães que falam inglês e holandês sem o menor sotaque. As crianças nórdicas em idade escolar assimilam naturalmente línguas estrangeiras. A minha convicção de que não deveríamos estar apenas a aprender línguas europeias tornou-se mais forte ainda quando visitei Cabo Verde, um arquipélago ao largo da costa do Senegal.
Lá, percebi que estamos a valorizar três ou quatro línguas europeias estabelecidas à custa de todo o resto, especialmente línguas de povos não brancos que não sejam reconhecidas ou padronizadas e, por conseguinte, difícil de avaliar. No meu caso, até então, eu nunca tinha me perguntado porque deveria aprender inglês, português e francês. A sua importância global é indiscutível, mas ao seguir a multidão, estou a submeter-me impensadamente ao seu domínio global.
Recolhi prospetos universitários na Praia, ilha de Santiago, e fiquei surpreendida por descobrir que o curso de Línguas Estrangeiras Aplicadas é estudado em mais do que um polo de ensino. A Alliance Française situa-se no Mindelo, ilha de São Vicente, o que explica a coleção considerável de dissertações escritas em francês em várias bibliotecas que visitei.
Também passei por uma professora nativa de espanhol. Em entrevistas com professores portugueses locais, entendi que eles fizeram o curso “Estudos Cabo-Verdianos e Portugueses” para se prepararem para a profissão, mas o ensino do kabuverdianu – a língua do dia-a-dia e do comércio em todo o país – foi decididamente fraco em comparação com o de português, a língua do antigo colonizador e a única língua oficial de Cabo Verde no momento.
Mesmo sabendo que África é o continente com a maior diversidade linguística mundial, o ensino das línguas africanas nunca foi uma prioridade. Ironicamente, os melhores linguistas africanos residem no estrangeiro, ensinam ou realizam investigação na América ou na Europa. Kabuverdianu – mais conhecido como crioulo cabo-verdiano – está muito pior. Não é geralmente considerado uma língua africana, mas também não é, de certeza, uma língua europeia. Se consultar qualquer lista de línguas mundiais, não vai encontrar o Kabuverdianu.
Poderíamos iniciar um debate animado sobre em que consiste uma língua e se o kabuverdianu é realmente uma língua (Batalha, 2004, 2007); mas o que é fundamental é a ideia de que estamos expostos a muito poucas línguas e que estamos a perder com isso.
Línguas europeias como o inglês, francês e português são usadas na África Subsaariana por razões práticas. Na maioria dos casos, porém, são línguas adquiridas e não línguas da casa. O seguinte está a acontecer:
Muitas línguas africanas estão ameaçadas. É por isso que os investigadores as registram para a posteridade. Eles pedem aos falantes de uma língua ameaçada, como o shangaji de Moçambique, que traduzam palavras e frases de uma língua de origem comum, como o português. Mas como é que os investigadores saberão que o shangaji distingue entre vɔ̧́ɔ, ttẽẽ e chwée – referindo-se, respectivamente, à brancura da mexoeira, sorgo e milho que foi esmagada – se não houver tais palavras em português? (Museu Real da África Central, 2019, tradução)
Lamentavelmente, encontrei problemas semelhantes na tradução da tradição oral cabo-verdiana para o chinês. As minhas principais referências são a coleção de Na Bóka Noti de Tomé Varela da Silva, que é, de longe, a mais completa e mais bem organizada. A repetição é usada na tradição oral cabo-verdiana para reforçar ideias e acrescentar musicalidade à narração de histórias, sem esquecer que os temas e verbos são sempre explícitos no kabuverdianu.
Consequentemente, as traduções chinesas tornam-se frequentemente mais densas e curtas após a supressão de elementos crioulos repetitivos. Isto não é novidade. O que é curioso é a reciclagem de ingredientes comestíveis em muitas histórias cabo-verdianas, nomeadamente o milho e as variantes, todos os tipos de feijão, produtos locais, e carne e peixe preparados de formas diferentes. Nessas histórias, os personagens movimentam-se muito entre a casa e a terra.
Há explicações históricas para as observações acima. Cabo Verde situa-se no Sahel. Ao longo da história colonial, esta colônia portuguesa antiga sofreu secas e fomes severas (Carreira, 1984). A comida foi sempre muito escassa. As memórias ficam com a geração atual, que continua a cultivar plantas resistentes adaptadas ao clima. A agricultura continua a ser a atividade econômica de base nas zonas rurais e uma prática cultural simbólica nas zonas urbanas e periféricas. Isso também tem implicações intelectuais e literárias importantes (Hopffer Almada, 1998; Lobo 2012).
Embora a pobreza extrema tenha sido erradicada, os alimentos ainda são preciosos em Cabo Verde devido às limitações geográficas e climáticas. Graças à ajuda internacional, remessas de emigrantes, introdução do arroz, importação regular de legumes, frutas, carne e peixe congelados, bem como ao trabalho árduo e sacrifícios dos cabo-verdianos, o problema está controlado. Ainda que haja escassez de alimentos, não há falta de hospitalidade e generosidade. As pessoas partilham o que têm e contam histórias sobre plantas, gado, animais, solo, etc.
A tradição oral é uma forma popular de contar histórias. Qualquer tentativa de traduzir contos populares crioulos cabo-verdianos deve começar com uma boa compreensão dos rudimentos. Seria errado e desrespeitoso assumir que é fácil traduzi-los devido à sintaxe descomplicada, frontalidade das expressões e repetição de temas.
Curiosamente, muitas histórias falam de comida. Relatam como as pessoas trabalhavam na quinta, cozinhavam ou comiam outrora. Muitas são provocadoras e irónicas, em que os comportamentos dos personagens são exagerados para realçar o absurdo. O que é difícil de traduzir para o chinês, por exemplo, é o desejo de certos alimentos.
O conceito de uma panela de comida – um conjunto de legumes e vegetais para uma refeição completa que leva horas a preparar e cozinhar – é específico em Cabo Verde e em muitas outras partes de África (McCann, 2009), mas não tem equivalente na cultura chinesa.
Um chinês terá dificuldade em compreender porque é que um cabo-verdiano adora o que é aparentemente uma mistura vegetariana pesada. O primeiro nunca teve a oportunidade de prová-la e não tem memória para invocar. Para agravar o problema, muitos nomes de pratos cabo-verdianos são despretensiosos, ou seja, os nomes dos pratos são realmente os ingredientes principais. Na verdade, pouco cuidado é tomado para nomear os alimentos, e é muito mais comum dizer diretamente os ingredientes, todos locais, familiares e tradicionais.
Sobre os desafios de tradução, pode-se dizer que os cabo-verdianos seguem um conceito unitário de alimentação enquanto os chineses favorecem um conceito integrado. Na investigação de campo nas ilhas de Cabo Verde, as pessoas tenderam a apresentar-me a sua cozinha em unidades de alimento, ditando-me uma longa lista de ingredientes alimentares de todas as cores e formas, da terra e do mar.
Perguntaram-me se é consumido muito arroz na China e se os chineses comem muito milho. Esta foi uma descoberta fascinante. Os cabo-verdianos dão mais importância às unidades individuais. Qualquer prato é o resultado de uma certa combinação destas unidades. Em contrapartida, na cultura chinesa, pensa-se na alimentação como uma espécie de sistema solar.
Tipicamente, o arroz é o Sol, e vários pratos de legumes e carne ou peixe são os planetas. Cada prato costume tem um nome, que pode ser muito chique e figurativo. Os ingredientes já são consumidos na confeção de cada prato e são secundários.
Para concluir, a tradição oral cabo-verdiana permite que outros conheçam a história e cultura do país. Não há nada melhor do que uma história bem contada. Embora Cabo Verde tenha alguns dos melhores registos históricos da África Lusófona e da África Ocidental, os relatos de secas, fome e sofrimento humano podem ser inquietantes.
A tradição oral, por sua vez, apresenta ao leitor o lado positivo da história, a perseverança de uma nação e a esperança que nunca morre. Como o presente ensaio tenta explicar, os contos populares contêm referências valiosas à alimentação e às relações interpessoais. Estão imbuídos de emoções e sabedoria. Desempenham as múltiplas funções de nos entreter, aconselhar e consolar.
*Este ensaio foi escrito em inglês, originalmente. A autora, doutoranda em Estudos Africanos do Instituto Universitário de Lisboa, traduziu a pesquisa para o português a fim de alcançar um público lusófono maior.
Bibliografia
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Batalha, L. (2004). The politics of Cape Verdean Creole. In M. Fernández, F. F. Manuel, & N. V. Veiga (Eds.), Los Criollos de Base Ibérica ACBLPE 2003 (pp. 101-109). Madrid: Iberoamericana.
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Carreira, A. (1984). Cabo Verde: Aspectos Sociais. Secas e Fomes do Século XX (2nd ed.). Lisbon: Ulmeiro.
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Lobo, A. (2012). Do feio ao belo: Aridez, seca, “patrimônio natural” e identidade em Cabo Verde. In L. Sansone (Ed.), Memórias da África: Patrimônios, Museus e Políticas das Identidades (pp. 67–90). Salvador: EDUFBA.
McCann, J. C. (2009). Stirring the Pot: A History of African Cuisine. Athens, OH: Ohio University Press.
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Vansina, J. (1985). Oral Tradition as History. Madison, WI: University of Wisconsin Press.