Natalia da Luz, Por dentro da África
Rio – As marcas da cultura estão em todas as partes do mundo. O que para um grupo pode ser visto com absoluta normalidade, para outro, pode ser olhado com estranhamento. Essa sensação pode ser sentida com inúmeras formas de alterar ou de acrescentar adereços ao corpo. Em algumas regiões do mundo, principalmente, em alguns países africanos, as marcas nos rostos falam muito da identidade, da tradição e contam a história de uma comunidade.
Nascida em Abidjan, Costa do Marfim, a fotógrafa Joana Choumali dedicou o seu último trabalho – Haabre (que significa escarificação em kô, uma das línguas de Burkina Faso) – a pesquisar as marcas chamadas de escarificação, que ganham diferentes nomes em outras regiões da África.
– Em primeiro lugar, eu escolhi esse trabalho para responder às minhas próprias perguntas, porque notei que as pessoas com escarificações, tão comuns quando eu era criança, eram cada vez mais raras. Então, eu comecei a fazer perguntas para as pessoas ao meu redor e decidi entrevistar e abordar os cidadãos de uma grande metrópole, como Abidjan, que vivem com escarificações no século XXI – disse a fotógrafa em entrevista exclusiva ao Por dentro da África, ressaltando que usou em sua pesquisa sete pessoas com escarificações.
Joana, que já teve suas coleções exibidas em diferentes lugares do mundo, conta que procurava abordar uma prática tradicional, abrindo um diálogo entre o passado e presente e dando voz a essas pessoas para que elas contassem suas próprias histórias.
– O objetivo do meu trabalho é mostrar a identidade africana sob um ponto de vista contemporâneo. A cultura africana é tão rica, poderosa e cheia de diversidade que é absolutamente cativante. Muitos dos personagens desse trabalho ficaram lisonjeados de terem participado da exposição – destacou a marfinesa, que exibiu a sua série no Festival ‘emoi photographique’ em Angouleme, França.
A escarificação é uma atividade cultural amplamente executada na África. Em essência, é a prática de uma incisão na pele com um instrumento afiado (como uma faca, vidro, pedra, ou casca de coco). Pigmentos escuros, como carvão ou pólvora, às vezes, são esfregados na ferida para dar mais ênfase às formas.
Respeito e a fuga dos etnocentrismos
Cada cultura tem as suas particularidades, gostos e hábitos desde a vestimenta até a alimentação. Quando um observador parte do seu “universo” e vai ao encontro de outro, o exercício de distanciamento de seus parâmetros deve ser acionado com o objetivo de evitar sentimentos de incompreensão e intolerância. Sobre esse posicionamento, o antropólogo francês Lévi-Strauss diz em Raça e História: “ O bárbaro é, em primeiro lugar, o homem que crê na barbárie.” (2008;19)
Strauss alerta para o cuidado necessário à analise de culturas desconhecidas, tomando o caminho inverso do etnocentrismo. Para ele, o homem realiza a sua natureza nas culturas tradicionais, não na humanidade abstrata. Mesmo com as mais diversas revoluções, as culturas mantêm aspectos intactos. O homem tende a não perceber a diversidade das culturas, procurando suprimir o escandaloso e o chocante.
Como exemplo das práticas que transformam o corpo, vale citar o autor Anthony Seeger que, em Os índios e nós, diz que a ornamentação de um órgão está ligada ao significado simbólico desse órgão para uma sociedade. Na década de 70, em trabalho de campo como etnólogo sobre os Suyá, grupo que hoje também é chamado de Kĩsêdjê (localizado no Parque Indígena do Xingu, no Brasil), Seeger destacou que o ornamento das orelhas e da boca poderia, perfeitamente, indicar a importância simbólica da audição e da fala, na medida em que essas faculdades são definidas por sociedades específicas.
Desta forma, os ornamentos físicos devem ser tratados como símbolos, com uma variedade de significados. Devem ser examinados como um sistema, em qualquer sociedade, ao invés de serem examinados de uma forma isolada e lúcida, porém enganadora, como tem sido feito usualmente no passado (SEEGER,1980; 45).
O que o autor propõe é uma análise mais abrangente na busca pelas motivações e significados das práticas, cerimônias e rituais de cada comunidade. A análise de Seeger, durante trabalho de campo nas comunidades dos Suyá, destaca que os ornamentos corporais são inseridos em ritos de passagem e constituem status assim como as escarificações.
Escarificações e Identidade
Dependendo do país, da região, da etnia, as marcas são feitas com mais ou menos intensidade não apenas no rosto, mas em todo o corpo. Com o tempo, esse costume, tão facilmente encontrado há 60 anos, vem se tornando mais raro. Nesse trabalho, Joana conta que conseguiu compreender muitas coisas sobre um ponto da cultura, que lhe despertava muita curiosidade.
– Eu descobri que a principal função da escarificação é a identificação, como um cartão de identidade facial. O que eu notei é que as pessoas aprendem comigo sobre a prática, as pessoas começam lendo perguntas sobre ela e fazem um paralelo com a crescente necessidade de tatoos na sociedade ocidental, por exemplo. Eu realmente queria trabalhar sem julgar, com respeito – completou a fotógrafa.
Sobre o significado das escarificações para os africanos que participaram da pesquisa, ela conta que, às vezes, é de orgulho, às vezes, de fardo. Ela acredita que seja uma prática com tendência de desaparecer em um futuro muito breve, já que, em algumas regiões, ela é proibida.
– É muito raro ver em jovens. Todos os personagens que fizeram parte da exibição, por exemplo, se recusaram a reproduzir a prática em seus filhos. Nas cidades, todos eles disseram que as marcas, muitas vezes, causam um sentimento de rejeição nas pessoas que se aproximam, diferentemente das aldeias – destaca a fotógrafa.
De Abidjan para Cotonou
Marcas corporais permanentes enfatizam papéis sociais, políticos e religiosos. A escarificação facial na África Ocidental (como Benim, Burkina Faso, Guiné Bissau, Costa do Marfim) é usada, principalmente, para identificação de grupos étnicos, famílias, indivíduos, mas também para expressar a beleza pessoal.
– No Benim, chamamos de Houé, e não é algo estranho para as pessoas de lá. Todo mundo sabe que elas estão ligadas à etnia, à cultura da província e a cada reino – disse Abbé Tossa, nascido em Cotonou, capital do Benim, explicando que, com as marcas, as pessoas do país identificam, rapidamente, de qual reino, etnia e província o outro pertence. Pertencente ao Reino Adja-Tado, Abbé, hoje com 26 anos, lembra pouco do dia que fez o Houé, aos 7 anos de idade.
Ele diz que, rapidamente, sentiu uns riscos de madeira na parte superior de suas bochechas e, quando se deu conta, já havia três linhas curtas de cada lado do rosto.
– Não doeu nada. Depois, a pessoa usou uma tinta para reforçar a marca. As minhas marcas não foram uma obrigação. Há pessoas na minha família que não as têm, mas, no meu caso, os meus pais decidiram, e eu fui premiado! A questão não é gostar ou não, é respeito à cultura – disse Abbe, que hoje vive em São Paulo e é estudante de biologia da UNIFESP, lembrando que no Benim é muito raro ver homens e mulheres usando piercings na boca e no nariz, coisa que, no Brasil, é facilmente avistado.
Se Abbé já se habitou aos piercings pelo Brasil, daqui a pouco se habituará também às escarificações deste lado do Atlântico. Essa nova modalidade de “alterar” o corpo vem ganhando muitos adeptos e crescendo em estúdios de tatuagens. Diferentemente do Benim, Burkina Faso e Costa do Marfim, as escarificações no Brasil, Estados Unidos e muitos países da Europa não possuem relações com reinos, etnias e províncias, mas possuem interpretações ligadas à estética.
O trabalho de Joana ganhou repercussão em muitos países. De 14 de junho a 30 agosto, Haabre será exibido no AAA Abdijan Contemporary Arts, uma notável fundação em Abdijan, que vai reunir os maiores artistas do ano que fizeram um trabalho de repercussão.
– Eu espero que ele ajude aqueles com escarificação a se sentirem melhor sobre si mesmos. Este trabalho é sobre a memória cultural, sobre o elo entre o passado e o presente. Espero que ele crie uma ponte entre o velho e a geração mais jovem pelo tema complexo da identidade africana contemporânea – completou.
Saiba mais sobre o trabalho de Joana aqui
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