Natalia da Luz, Por dentro da África
*Atualização às 12h de 19 de março – O julgamento foi adiado mais uma vez porque o advogado e o ex-procurador geral não compareceram ao tribunal.
*Atualização às 11h50 (18 de março). O julgamento que estava marcado para o dia 5 de março foi adiado para o dia 19 de março. Por dentro da África atualizou as novas datas.
Em Angola, denunciar casos de corrupção é como assinar um contrato de perseguição permanente. O governo (comandado pelo mesmo partido -o MPLA- há 43 anos) reprime, acusa e prende quem desafia sua forma de governar. Nesta segunda-feira (19 de março), uma nova acusação levará o jornalista Rafael Marques ao Tribunal Provincial de Luanda.
As acusações de injúria e ultraje à soberania são uma reação do então procurador-geral da República de Angola, João Maria Moreira de Sousa. Em reportagem publicada em outubro de 2016 no site Maka Angola, Rafael apontava a compra de um terreno de três hectares na região de Porto Amboim por João Maria. De acordo com a documentação, João Maria havia comprado a propriedade com a finalidade de construir um condomínio, o que é proibido para um magistrado em sua posição. Neste processo, além de Rafael, o juiz também acusa Mariano Bras, jornalista de ‘O Crime’, por ter republicado o texto de “injúria”. Em defesa da liberdade de imprensa, angolanos marcaram uma manifestação diante do tribunal.
“O caso de João Maria é uma afronta, mas, em Angola, não se trata de um caso isolado. Muitos políticos, magistrados e servidores públicos estão envolvidos em negócios ilegais. Eles sabem que não podem fazer, mas fazem”, disse o ativista Rafael Marques, em entrevista ao Por dentro da África.
Para ilustrar que casos como esse não são únicos, Rafael menciona o episódio que envolveu Rui Ferreira, juiz conselheiro e então presidente do Tribunal Constitucional, que, há alguns anos, adquiriu, junto dos filhos, 24 mil hectares em Kwanza-Sul. A reportagem dele, publicada em novembro de 2014, ganhou repercussão e cobrou do magistrado uma retratação.
No caso que levará o jornalista ao tribunal amanhã (com uma possível penalidade de 3 a 4 anos de detenção), a defesa diz que o procurador não era titular do imóvel, e Rafael rebate a crítica com provas de que o magistrado fez a aquisição. Por não ter pago algumas prestações, ele teria perdido a titularidade, o que não altera a conduta ilegal. Todo esse processo está detalhado em escrituras.
Com essas provas, a acusação de injúria é desqualificada. Quanto à acusação de ultraje à soberania, não é palpável porque funciona como sombra de um governo ditatorial e ajuda a consolidar a ideia de que Angola não vivencia democracia, tampouco liberdade de imprensa.
Outro exemplo do caráter repressivo das leia angolanas foi o caso do jornalista e ativista Domingos da Cruz, perseguido por conta do seu artigo “Quando a guerra é necessária e urgente”, publicado em 2009, no Folha 8. O angolano foi a julgamento em 2013 e absolvido da acusação de “instigação à desobediência coletiva”. Rafael lembra que, no processo de Domingos, a acusação era baseada na Lei dos Crimes contra a Segurança de Estado (Lei n° 7/78), que havia sido revogada três anos antes.
Saiba mais aqui – Domingos da Cruz vai a julgamento após publicação de obra que denuncia corrupção
“As pessoas foram tão destituídas de seu valor humano que, de certa forma, acham normal viver de esquemas. A Constituição angolana é clara: a soberania reside no povo, mas as pessoas não se veem como soberanas porque são maltratadas pelo Estado”, contou Rafael.
Segundo o Índice de Percepção da Corrupção da Transparência Internacional, Angola é um dos países mais corruptos do mundo. Em 2016, a pesquisa indicou que, em um universo de 167 países, a nação africana ocupava a posição 163ª. (Quanto maior a colocação, maior é a percepção de corrupção).
Leia também: “Em Angola, o poder é visto como fonte de corrupção”, diz Rafael Marques
Assista (abaixo) ao vídeo que Por dentro da África gravou com Rafael
No país de cerca de 25 milhões de habitantes, onde políticos criam estratégias para punir quem se ergue contra abusos por parte do Estado, a justiça serve para favorecer quem se mantém no poder. São essas pessoas que Rafael diariamente desafia em seu trabalho incansável no Maka Angola.
Canal de denúncias e jornalismo investigativo
Até hoje, os angolanos têm apenas um órgão de imprensa, que funciona como um veículo de propaganda do governo. Ele lembra que um dos dois canais da TV pública foi entregue aos filhos do ex-presidente José Eduardo dos Santos (o outro já era do governo), o que torna ainda mais impossível enxergar qualquer sinal de liberdade de imprensa.
“O Maka (na língua kimbundu, significa “problema delicado, complexo ou grave”) é uma das poucas vozes que mostram uma realidade que o governo não quer que seja vista. Em julho de 2016, por exemplo, a Assembleia Nacional aprovou uma nova Lei de Imprensa e um pacote de repressão na internet. Eles criaram uma entidade reguladora que tem poderes policiais para, sem mandato judicial, deter jornalistas, pegar seus materiais de trabalho, seja nas redações ou em casa”, explicou Rafael.
Formado em jornalismo e antropologia pela Goldsmiths (Inglaterra), o ativista, que é mestre em Estudos Africanos, se tornou um porta-voz das violações contra a liberdade de imprensa em seu país, que, segundo o último relatório do Repórteres Sem Fronteiras, está na 123ª posição do ranking de liberdade de imprensa. Dentre os países lusófonos, do lado oposto, está Cabo Verde, na 34ª posição. Esses e muitos outros abusos são retratados no Maka Angola.
Perseguição
Em 99, Rafael passou 42 dias na prisão (o jugamento aconteceu em 2000). Enquanto estava encarcerado, fez greve de fome em protesto por ter sido impedido de falar com seus familiares.
Em sua função de jornalista investigativo, Rafael foi para o tribunal em outros dois casos (em um deles, ele foi processado duas vezes: em Angola e Portugal). A primeira vez no tribunal foi em 2000 por conta do artigo “O baton da ditadura”, onde ele acusava o ex-presidente angolano (José Eduardo dos Santos) de promover a corrupção no país. Nesta ocasião, ele foi condenado a seis meses, mas o recurso ao Supremo suspendeu a pena. No mesmo ano, pelo seu trabalho, ele recebeu o Percy Qoboza Award, da Associação Nacional dos Jornalistas Negros dos Estados Unidos da América.
Em 2011, o ativista foi novamente processado em razão das denúncias contidas em seu livro ‘Diamantes de Sangue: Tortura e corrupção em Angola’. O processo foi movido pela Sociedade Mineira do Cuango Ltda, empresa que explora diamantes e pela Teleservice, empresa de segurança privada. O processo acabou sendo arquivado em 2013 por falta de provas, a pedido do Ministério Público português. Neste ano, Rafael recebeu o Integrity Award da Transparência Internacional, pelo seu empenho em expor a corrupção institucional em Angola.
Em 2015, por conta das denúncias em seu livro, Rafael foi processado novamente por sete generais e foi a julgamento em 24 de março de 2015 no Tribunal Provincial de Luanda. No dia 28 de maio de 2015, segundo a Open Society, 49 organizações de direitos humanos, indivíduos e acadêmicos emitiram uma carta conjunta expressando fortes preocupações sobre o julgamento do jornalista.
Na véspera de mais um julgamento, mesmo acostumado ao modo angolano de governar – que reprime aqueles que lutam contra os abusos – Rafael segue confiante, sem alterar sua rotina de investigações.
“Estamos cansados de ver procuradores, juízes, advogados comprados. É a forma que eles preservam seu poder, sua perversidade. A justiça condena os pobres neste país, e isso precisa mudar”.