Natalia da Luz, Por dentro da África
Johannesburg, África do Sul – Um dos maiores nomes do ativismo contra o apartheid, Steve Biko ainda é inspiração para aqueles que lutam contra a segregação racial, que não precisa ser instituída por lei para fazer parte da realidade. Nascido na cidade de Tylden, na África do Sul, o ativista morto em 12 de setembro de 1977, foi o mentor e o herói de muitos jovens que gritavam pela liberdade diante da repressão do regime do apartheid (1948 – 1994).
Uma das mais maiores – e infelizmente mais trágicas – revoltas foi influenciada por ele, fundador do movimento Consciência Negra, que teve a atuação proibida pelo governo após o massacre do dia 16 de junho de 1976. Neste dia, mais de 10 mil estudantes (recebidos a bala) foram às ruas de Soweto com cartazes que diziam: “Abaixo o Afrikâans”.
Eles falavam zulu, xhosa, tsonga, sotho e as outras línguas locais (a África do Sul possui 11 idiomas oficiais) desejando seguir devotos à própria cultura, sem a obrigação de aprender o idioma dos colonizadores.
– Por que falar a língua de um povo que nos aprisionou? Já tínhamos que seguir muitas regras. Não podíamos frequentar os lugares onde tínhamos nascido e aí queriam nos obrigar a falar afrikâans? – perguntou o sul-africano Thebo Moklate, de 50 anos, que vive em Soweto, cenário de um dos maiores massacres estudantis do período do apartheid.
A foto de Hector Pieterson (de apenas 12 anos), morto após o ataque violento da polícia, ficou eternizada. Rodou o mundo, levando repúdio ao sistema implantado na África do Sul, que apenas naquele ano matou cerca de 700 jovens em protestos no dia 16 de junho e ao longo dos meses.
Não à inferioridade
O propósito de Biko era que os negros entendessem que eles não eram inferiores, que eles poderiam – e deveriam – ocupar cargos importantes na terra onde nasceram. A sul-africana Thefubi Mshane acredita que as ideias de Biko transformaram a percepção dos negros em relação as suas capacidades.
As profissões dos ancestrais de Thefubi sempre estiveram ligadas às atividades secundárias, cuja maior exigência não era a técnica ou a intelectual. Eles dificilmente conheciam um médico ou um engenheiro negro…
– Nós não tínhamos nem a possibilidade de sonhar em seguir algumas carreiras. Poucos conseguiam. Hoje, os jovens negros têm chances maiores – disse a moradora de Soweto – lembrando que havia um abismo entre o potencial intelectual explorado entre brancos e negros.
Biko também foi o fundador, em 1968, da União Nacional de Estudantes Sul-Africanos tornando-se presidente honorário da Convenção dos Negros em 1972. Devido ao seu ativismo contra o apartheid em 1973, ele foi banido pelo governo, sendo proibido de se comunicar com mais de uma pessoa por vez. Mesmo assim, ele encontrava mecanismos de burlar o exílio para levar a mensagem de valorização da raça negra.
Nesse mesmo ano, a Organização das Nações Unidas considerou o apartheid um crime contra a humanidade.
Sistema de ensino para os negros era limitado
O cenário onde os negros estavam inseridos era positivamente alterado pelo discurso autoconfiante de Biko que alimentava o ego desnutrido e sufocado dos negros. Vale ressaltar que, desde 1955, o governo implantara um sistema de ensino específico para os negros, que tinha como lição principal ensinar que os mesmos eram inferiores. As aulas e todo o sistema orientavam os sul-africanos de pele escura para um mercado de trabalho não-qualificado.
Muitas matérias foram excluídas, já que não eram necessárias à formação de um aluno negro. Os investimentos no ensino da população negra foram reduzidos drasticamente e os salários dos professores também. Milhões de negros protagonizaram esse abismo na educação do próprio país, que gastava com os negros um décimo do que era gasto com os brancos. As escolas dos negros eram muito precárias. Muitas não tinham eletricidade, nem água corrente.
Ídolo dos jovens, Biko era contra as lições de inferioridade dada aos negros por ordem do governo branco.
Ele queria que os negros tivessem a consciência de sua capacidade e que ocupassem importantes postos na sociedade. Mesmo exilado e vigiado 24 horas pela polícia, Biko influenciava, inspirava e conspirava a favor de uma África do Sul justa.
Em uma de suas escapadas dos olhos vigilantes da polícia, no dia 6 de setembro de 1977, Biko foi reconhecido em uma blitz e levado para a prisão. Durante dias consecutivos, ele sofreu inúmeras agressões. Em 11 de setembro, foi diagnosticado com uma lesão cerebral.
Biko morreu a caminho do hospital e o governo alegou que o motivo da tragédia teria sido uma greve de fome… Uma inverdade que logo ganhou o mundo graças a um branco: Donald Woods.
Donald Woods pela causa da juventude negra
Donald Woods era descendente britânico e sua família estava há cinco gerações na África do Sul. Desde que o Partido Nacional assumira o poder, o editor-chefe do Daily Dispach, veículo que seguia uma política anti-apartheid começou a questionar as regras separatistas. Ele rejeitou até mesmo a política de assentos na redação do jornal, permitindo que negros, brancos e coloureds sentassem lado a lado.
Porém, mesmo em desacordo ao regime, ele tinha receio quando às ideias de Biko, que aos olhos do governo, eram revolucionárias e perigosas. Woods foi conhecer Biko e ficou extremamente tocado. Com raras exceções, os brancos não conheciam de perto a realidade de seus conterrâneos, que viviam a margem de sua comodidade, que desconheciam a cidadania. Woods passou a experimentar esse lado sul-africano na companhia do líder negro. Logo, os dois de origens tão distantes, começaram a falar a mesma língua. Woods se tornou um grande amigo e confidente de Biko.
E por isso ele tomou para si a responsabilidade de contar ao mundo o que, de fato, tinha acontecido ao amigo. Foi ele quem ordenou que seu fotógrafo registrasse o corpo de Biko ainda no necrotério provando que ele havia sido brutalmente agredido e que a causa de sua morte havia sido um terrível espancamento. Woods desmascarou a justiça sul-africana tornando-se consequentemente um grande inimigo do governo.
– Woods não era um branco como a maioria. Ele tinha mais sensibilidade e estava cansado de tanta impunidade. Certamente, ele foi um dos que teve importância na luta contra o regime – opinou Thefubi.
O jornalista foi para Londres onde conseguiu asilo político tornando-se um porta-voz do ativismo anti-apartheid. Espalhou pela imprensa mundial as fotos com as marcas no corpo de Biko e publicou um livro com a sua história, uma biografia do grande líder da Consciência Negra que leva o nome do próprio personagem.
O retorno à África do Sul antecedeu as primeiras eleições democráticas do seu país, em 1994. Nas eleições do dia 27 de abril, reconhecendo os seus esforços, a multidão que aguardava para votar, deu a ele um lugar de honra para que ele pudesse ser o primeiro a votar.
Mesmo com as provas de Woods, o Ministério Público anunciou, em 2003 (dois anos após a morte dele em decorrência de um câncer), que os policiais envolvidos não seriam processados. O Estado sul-africano não se responsabilizava…
Em 1980, Peter Gabriel lançou “Biko”, uma canção de protesto pela morte do líder sul-africano. Pouco tempo depois, a história de Biko e Woods virou um dos melhores filmes sobre o período do apartheid. Em 1987, Richard Attenborough dirigiu Cry Freedom ou Um Grito de Liberdade.
Confira o trailer abaixo:
(Artigo publicado em 2010, no Jornal do Brasil)
Por dentro da África