Sociedades Agrárias Africanas: Produzir pela Vida

0
853
Sociedades Africanas – ONU

Por Ulrich Schiefer, Por dentro da África 

(Artigo produzido em parceria com o Instituto Universitário de Lisboa)

Nenhuma sociedade pode existir durante muito tempo se não produzir. Como as sociedades agrárias africanas já existem há alguns milhares de anos, alguma coisa estão a fazer bem.

Isto refere-se às sociedades sobreviventes: as sociedades que não se conseguiram adaptar às mudanças no seu ambiente desapareceram, ou foram absorvidas pelas mais flexíveis e mais fortes, ou as mais afortunadas. E quem não conseguiu criar uma economia suficientemente forte para sustentar a sua força militar e regras sociais para garantir a sua coesão interna, igualmente, desapareceu. Imaginemos uma sociedade étnica que permite que as suas raparigas casem com homens de uma outra sociedade, que por sua vez não permite o mesmo.

É fácil ver que dentro de poucas gerações a primeira sociedade vai enfraquecer e eventualmente desaparecer. As regras de casamento, tão bem estudados pelos antropólogos, como se vê, além de limitar a liberdade individual, em certos contextos têm uma função fulcral para a existência das sociedades.

Os agrônomos chamam às sociedades agrárias africanas sociedades de fracos recursos. Comparada com outros tipos de agricultura no mundo, de fato a agricultura “tradicional” africana em termos técnicos é bastante simples. As alfaias são rudimentares, a energia é normalmente energia humana – a tração animal é muito rara – o “capital” dos produtores rurais é bastante limitado e as reservas alimentares são escassas. Mesmo assim estas sociedades viveram pela menos até os meados do século XX, e onde foram deixadas em paz pelo colonialismo, numa relativa abundância.

De onde vem, então, a sua força? A capacidade produtiva resulta de uma combinação muito específica de vários fatores, nomeadamente de recursos sociais e genéticos que são organizados de forma característica numa matriz étnica.

Vamos primeiro olhar para os recursos sociais: a organização da produção. Aqui observamos que o plano da sociedade e, portanto, a distribuição dos diferentes fatores da produção, (mão-de-obra, recursos técnicos, sementes, acesso à terra e à agua) está contido na estrutura social e codificado na tradição. Nem as sociedades, nem as unidades familiares de produção, têm de fazer novos planos todos os anos, ou tomar decisões profundas sobre o que vão produzir, aonde e com que meios. Dentro da tradição, naturalmente, têm alguma margem da manobra que permite alguma adaptação. Contudo, eles podem assumir uma perspectiva de longo prazo.

Um exemplo: Fui um dia contatado pelo chefe da principal linhagem de uma sociedade étnica. Homem analfabeto, de aparência simples, dotado de um sentido de humor extraordinário, e de uma inteligência brilhante, ele assumiu a responsabilidade do bem-estar do seu povo. Tinha uma perspectiva histórica e uma análise política mais perspicaz que muitos da “elite política do Estado” treinados em universidades internacionais. Ele estava preocupado porque havia muita pressão para eles adaptarem novas culturas (arroz, etc.) introduzida pelos projetos de desenvolvimento. E, de facto, muitas famílias já tinham começado a plantar as novas culturas, em detrimento dos cereais clássicos.

E com algum sucesso – o arroz de sequeiro na altura era considerado um alimento “moderno” e superior, que aumentava o rendimento por hectare e era, portanto, muito propagandeado pelo governo e pelas agências internacionais. Então perguntou-me com toda a cortesia típica dos velhos africanos: “tu que conheces muitas terras e sabes muito, o que nos aconselhas?”

A minha resposta foi simples: “voltem aos caminhos antigos!” Três anos mais tarde mandaram-me recado: “o teu conselho safou-nos porque as nossas culturas tradicionais resistiram à seca que destruiu as novas culturas. Fomos os únicos na região a não passar fome”.

A tradição limita o consumo de forma muito rigorosa. Os padrões simples de consumo alimentar são aliviados somente durante as festas. Este consumo limitado é contrastante com um ambiente onde os recursos parecem quase ilimitados e onde todos podem ir buscar tudo que precisam para fazer as suas alfaias, construir as suas casas, além de muitos alimentos que ainda se adquirem diretamente em regime de coleta.

A força real das sociedades tem um segundo pilar, não menos importante que a distribuição dos fatores de produção: a solidariedade. Isto quer dizer que existe uma obrigação de partilhar os seus pertences, especialmente, os alimentos. Numa dada sociedade naturalmente existem sempre famílias, grupos de produtores, até aldeias inteiras, que podem ter azar e que sofrem de más colheitas. Em vez de morrer de fome podem recorrer aos apoios dos seus parentes, vizinhos, e membros da linhagem ou da tribo.

A própria estrutura social, codificada na tradição, serve de seguro contra os azares de vida. A pertença a um grupo social (étnico) é, portanto, fundamental. Porque através da pertença uma pessoa tem acesso aos meios de produção, (terrenos, sementes, alfaias, entre outros) e a alimentação e ao abrigo em casa dos seus parentes. Eis uma diferença fundamental entre sociedades africanas e europeias. Sociedades agrárias do ocidente funcionam ao contrário: o camponês é proprietário da terra e através da sua propriedade ele é membro da comunidade rural. Portanto a ligação entre a pessoa e os bens circunscreve as relações entre pessoas, enquanto nas sociedades africanas as relações entre as pessoas determinam as relações com os bens.

Os recursos naturais, com a limitação rigorosa do consumo, são abundantes, e não, como nas sociedades capitalistas (e nas teorias dos economistas), escassos. O uso dos recursos portanto não é racional no sentido de maximizar os recursos escassos e tirar o melhor proveito deles. Com poucas excepções, as estratégias das sociedades agrárias implicam uma diversificação.

Normalmente procuram cultivar vários produtos ao mesmo tempo e criar fontes variadas de rendimento. Isso não permite uma especialização com o aumento da produtividade e a consequente eficiência, como sempre propalada pelos economistas. Mas permite uma melhor gestão de risco, porque algo sempre há-de produzir, mesmo se algumas colheitas fracassam, outras permitem pelo menos sobreviver até ao próximo ciclo. Os riscos não são meramente financeiros.

O que está em causa é o bem-estar e a vivência e a sobrevivência da própria família. Facilmente se entende que os produtores rurais mostram uma certa aversão ao risco inerente a qualquer inovação, tão propalada pelas agências internacionais, e preferem apostar na tradição.

Uma certa despreocupação com os recursos naturais abundantes parece natural. O princípio de manutenção não se aplica a alfaias – já que podem facilmente ser substituídas. Um exemplo são as perdas pós-colheitas: em muitas sociedades africanas as perdas podem

ir de 30% a 50%. Existem grandes discrepâncias tanto nos sistemas de conservação como ao nível de perdas, que parecem determinadas pela tradição étnica. Muitas vezes etnias vizinhas em contato direto no mesmo território usam sistemas de armazenamento completamente diversos com níveis de perda muito diferentes sem, contudo, adaptarem os sistemas mais eficazes.

Os fatos observáveis contradizem, muitas vezes, a opinião muito espalhada de que as sociedades tradicionais dispõem de estratégias de conservação da natureza. Não existe dúvida de que a devastação do planeta é uma consequência da industrialização desenfreada, seja sob o signo do capitalismo (selvagem e não só) ou do socialismo.

Porém, as sociedades tradicionais funcionam dentro dos seus parâmetros e tradições, todavia sem uma consciência ecológica explícita. Com a sua orientação histórica virada para a tradição, que substancia os seus conhecimentos e as limitações na aquisição de conhecimentos sobre eventos externos – para não falar de prognósticos sobre o seu contexto – são lentas na adaptação às mudanças do ambiente. Isto não constitui problema se as mudanças externas são igualmente lentas, como por exemplo – historicamente – as mudanças climáticas.

Se as condições externas mudam depressa, se por exemplo, aparece uma procura para carvão vegetal para ser consumido no mercado de uma cidade, dentro de uma geração são capazes de queimar florestas seculares. A ideia de que as sociedades tradicionais dispõem de conhecimentos profundos do seu ambiente, que lhes serve de base para as suas estratégias ambientalistas, muitas vezes é

mais uma ilusão que se baseia numa construção dos antropólogos do que um fato observável na realidade. Muitas vezes os antropólogos passam anos a juntar os conhecimentos de uma sociedade que existem totalmente fragmentados nas cabeças de mulheres e homens velhos. Num trabalho paciente recolhem nomes de plantas, de animais, técnicas de cultivo e de transformação, para não falar dos conhecimentos sobre a cosmologia, a tradição, etc. Disto se constrói um impressionante corpo de conhecimento que é publicado.

A ideia que se cria, de que este corpo de conhecimento faz parte do conhecimento real e presente das sociedades e que informa as suas decisões, é tão absurda como pensar que um francês típico reflete sobre Foucault ou Derrida antes de ir ao trabalho de manhã.

Portanto, não existe uma consciência ecológica original e tradicional. Discursos proferidos neste sentido, mesmo por expoentes das sociedades agrárias, são normalmente adaptações dos discursos ecológicos modernos que são reproduzidos para impressionar estrangeiros, eventuais “doadores”.

Contudo, há situações, infelizmente cada vez mais frequentes, em que a economia normal deixa de funcionar – seja por influências negativas externas, por exemplo guerras, ou por mudanças climáticas, ou outras catástrofes que interrompem a produção normal. Nestas condições são ativados os mecanismos de emergência que implicam a mobilização dos conhecimentos e outros recursos que são guardados para estas situações, normalmente por velhos que dispõem de um horizonte temporal mais alongado do que os jovens.

As estratégias ativadas nestas circunstâncias, chamadas “coping estrategies” [“estratégias de suportar”] na linguagem técnica internacional, ganham cada vez mais importância, já que cada vez mais as sociedades agrárias sofrem de influências combinadas externas negativas que põem em causa o seu funcionamento normal.

Captura de tela 2015-09-07 às 12.31.37Artigo desenvolvido pelo Curso de Estudos Africanos, do Instituto Universitário de Lisboa, para a parceria com o Por dentro da África. Saiba mais sobre o curso e a instituição aqui