Natalia da Luz, Por dentro da África
(artigo publicado em 2014, na ocasião da comemoração dos 54 anos de independência)
Rio – Após uma das mais cruéis experiências de colonização, em 1960, a República Democrática do Congo se tornava independente da Bélgica. Em 2016, a celebração marca um avanço político, mas também a necessidade de não apagar da memória as atrocidades cometidas contra a população local, que ainda precisa se libertar de seus algozes.
– Expulsar o colonizador das nossas terras foi um bom início. Mas não nos tornamos “independentes de fato”. De maneira geral, independência é simultaneamente política, econômica e cultural. Ainda não se conquistou “de fato” nenhuma dessas. Tudo foi uma simulação. Por isso, é importante repensar nas estratégias endógenas de nos tornar “independentes de fato” – conta em entrevista exclusiva ao Por dentro da África o angolano Patrício Batsîkama, historiador, filósofo e especialista no Reino do Kongo.
Durante a Conferência de Berlim de 1885, que dividiu a África entre as potências europeias, Leopoldo II recebeu o território como possessão pessoal, chamando-o de Estado “Livre” do Congo. A Conferência teve como objetivo organizar a ocupação da África pelas potências coloniais, resultando em uma divisão que não respeitou a história, nem a cultura da região.
Em 1908, o Estado Livre do Congo deixou de ser propriedade da Coroa, por conta de a brutalidade do regime comandado por Leopoldo II ter sido exposta na imprensa ocidental, e tornou-se colônia da Bélgica, chamada Congo Belga. Vale ressaltar que o Estado Independente do Congo não era independente, mas uma propriedade de Leopoldo!
Resgate da história
Em artigo intitulado “A República Democrática do Congo” (disponível da Casa das Áfricas), o doutor em Ciências Sociais Kabengele Munanga, da Universidade de São Paulo, conta que o território que chamamos de República Democrática do Congo foi conhecido pelos europeus em 1482, quando o navegador português Diego Cão descobriu a bacia do rio Nzadi (Zaire), que se tornou mais tarde rio Congo.
A exploração mais sistemática do rio só foi feita mais tarde, por volta de 1874, pelo aventureiro e jornalista inglês Henry Morton Stanley. Enquanto isso, o rei belga Leopoldo I organizava, em 1876, a Conferência Internacional de Bruxelas, na qual foi criada a Associação Internacional Africana (AIA), com o objetivo de abrir a bacia do Congo para a dominação ocidental.
“Em 1878, seu sucessor, o rei Leopoldo II, convidou H.M.Stanley e confiou-lhe a delicada missão de negociar a submissão dos chefes locais, por meio de tratados de comércio, amizade e protetorado, o que foi conseguido sem que os chefes locais soubessem que se tratava, na realidade, da implantação de uma soberania estrangeira em seus territórios e não de amizade e protetorado”, escreveu Kabengele, nascido na República Democrática do Congo.
Em entrevista, Patrício Batsîkama recorda que as atrocidades de Leopoldo – com “Bula matadi” Stanley – chegaram até o vizinho Angola. Aliás, por isso que em Angola o colonizador português criou o Posto Militar de Maquella do Zombo na localidade de Mbongi, em 1896. Por Dentro da África perguntou a ele se, após a divulgação de todos esses abusos, a comoção do mundo deu lugar ao sentimento de esquecimento.
– Esquecer a brutalidade? Acho que as gerações atuais pouco ou nada compreendem estas atrocidades, e são eivadas pelas maravilhas da globalização e tecnologia. Logo, não vejo como se esquecerem, porque não parecem saber! – opinou o historiador formado pela Universidade Pedagógica Nacional de Kinshasa, na República Democrática.
Regime de Leopoldo II
Em seu artigo, Kabengele recorda que o regime de Leopodo II dividiu as terras em três categorias: indígenas, vacantes e concedidas a terceiros, pessoas físicas ou jurídicas. Ao decretar como propriedade do Estado as terras ditas vacantes, o rei impedia os colonos de se instalarem nessas terras sem pagar uma taxa, além de obrigar os nativos a fornecer determinadas quantias da colheita da borracha e da exploração do marfim.
De acordo com Kabengele, a primeira atividade rentável para o rei era o portage (transportador de carga), seguida das corveias para produzir comida e, finalmente, das colheitas de borracha e exploração do marfim.
“O portage foi um verdadeiro inferno. As populações submetidas brutalmente a um ritmo de trabalho de uma intensidade inabitual reagiam pela lentidão na execução das tarefas cuja finalidade não compreendiam e cuja motivação não dispunham. As corveias forneciam a comida a todos os europeus que sulcavam os rios com seus soldados, transportadores e outros auxiliares constrangidos a viver uma vida ambulante, sem poder ocupar-se com a agricultura, a caça e a pesca.” – exemplificou o professor congolês, graduado em Antropologia Cultural pela Université Officielle Du Congo à Lubumbashi
A partir de 1891-92, o Estado começou a colher borracha usando a mão de obra local. Para obter a quantidade desejada, os agentes belgas utilizavam diferentes ferramentas de repressão. Sequestros, chicotadas, fuzilamento, mutilações e abusos de todos os tipos eram castigos frequentes quando não era alcançada a quantia da colheita determinada. O número de membros mutilados servia como troféu para os mais cruéis dos agentes.
Denúncia de Roger Casement
Como cônsul do Reino Unido em vários países africanos, inclusive, na República Democrática do Congo, o irlandês Roger Casement (nascido em 1864 e executado por traição e espionagem contra a Inglaterra, em 1916) foi autorizado pelo governo britânico a investigar e a relatar os abusos dos direitos humanos contra os nativos.
Em 1903, o governo britânico encomendou Casement para investigar a situação. Um ano depois, o relatório foi entregue com uma série de denúncias e relatos de tortura, sequestros, mutilações e todos os tipos de abusos. Muitos desses, ele havia presenciado.
O relatório de Casement serviu para mostrar ao mundo o que acontecia naquela parte da África e para denunciar o rei belga, que havia explorado os recursos naturais (principalmente a borracha) como se aquela região africana fosse o seu próprio quintal.
Quando o relatório se tornou público, a Associação de Reforma Congo, fundada por ED Morel, com o apoio de Casement, exigiu ação. O Parlamento britânico pediu uma reunião das 14 potências signatárias para rever o Acordo de Berlim de 1885. Em 15 de novembro de 1908, o parlamento da Bélgica assumiu o Estado Livre do Congo e organizou a administração como o Congo Belga.
Após uma temporada na Amazônia peruana, Casement abdicou de seu posto diplomático para se dedicar integralmente à causa da independência irlandesa. Ele foi preso e, em 1916, condenado por traição após ter recorrido aos alemães, inimigos da Grã-Bretanha na Primeira Guerra Mundial, para que auxiliassem a Irlanda.
“O Sonho do Celta”
As atrocidades cometidas na República Democrática do Congo (nomeada Zaire entre 27 de outubro de 1971 e 17 de maio de 1997) são o cenário do Sonho do Celta, livro que deu ao escritor peruano Mario Vargas Lhosa o Nobel de Literatura de 2010. A obra foi inspirada na biografia de Casement (Heart of Darkness, escrita por Jospeh Conrad), que também fez denúncias contra a exploração dos nativos da Amazônia.
Para denegrir ainda mais sua imagem de traidor, os britânicos divulgaram trechos de seus supostos Diários Negros, em que Casement descrevia aventuras homossexuais – algumas reais, outras imaginárias.
Para o Novel Vargas Lhosa, este é também um livro que fala sobre como “certas circunstâncias desumanizam os homens até transformá-los em monstros. No Peru, ocorreu o mesmo que aconteceu no Congo, com o sistema de extração de borracha. Cometiam-se as maiores atrocidades sob a mais absoluta impunidade. É como uma espécie de imersão no mal. Casement viu tudo isso de perto, mas conseguiu manter distância e se proteger da loucura, escrevendo e documentando o que via”, analisou o escritor em entrevista ao jornal El País.
Independência
Kabengele recorda em seu artigo que a data da independência foi fixada em 30 de junho de 1960, surpreendendo a opinião internacional. Como dizia o professor Jean-Marie Bustin, “a independência do antigo Congo Belga, foi um truque, pois antes da reunião da mesa-redonda de Bruxelas, os mais influentes políticos, comerciantes e empresários belgas já andavam com a data de 30 de junho nos bolsos de seus paletós”.
– Como falar de independência para um povo congolês cuja sua estabilidade depende dos outros, sem condições sociais para o seu povo? Como falar de independência quando o próprio conflito congolês é experiência de teorias de laboratórios dos circuitos neocolonialistas ocidentais? – questiona Patrício.
Com um território rico em minérios e estrategicamente bem localizado, o país presidido por Joseph Kanbila (desde 2001) é palco da atuação de muitas milícias congolesas (como a Mai-Mai, Popular Front for justice in Congo e M23 – que, no início deste ano, disse que renunciaria a luta armada) e de países vizinhos (como o FDLR, grupo que atua dentro do Congo com o objetivo de derrubar o governo de Ruanda), que provocam uma bárbara guerra civil pelo controle dessa riqueza, atuando como um poder paralelo em regiões onde o Estado não consegue chegar.
No mês de março de 2014, o Conselho de Segurança da ONU prorrogou, por um ano, a Missão da Organização das Nações Unidas para a Estabilização da República Democrática do Congo (MONUSCO), comandada pelo general brasileiro Carlos Alberto dos Santos Cruz. Os esforços contra os carrascos que ferem o próprio povo em quase 20 anos de guerra civil são, atualmente, alguns dos principais desafios para o caminho da “independência” da República Democrática do Congo.
Confira a entrevista com Patrício Batsikama, filósofo de Arte formado na University of Plymouth, no Reino Unido e autor dos livros “A origem do Reino do Congo”, “O Reino do Congo e a sua Origem Meridional”, “Reino do Congo Consoante a bibliografia e a Tradição Oral” e “Etnonismo, uma Filosofia sobre a Razão Tolerante”.
PDA – O país se tornou propriedade do rei Leopoldo II, que, finalmente, teve as suas atrocidades expostas na imprensa mundial. Como essas denúncias foram importantes para expor os absurdos praticados pelas potências não apenas na República Democrática do Congo, mas em outros países africanos?
PB – Os Estados africanos têm interesse de investigar essas atrocidades, buscar compreensão nos contextos e tirar lição para o presente através de meios de socialização. A sociedade congolesa está paralisada de ponto de vista humano. Não há infraestrutura para albergar o ensino nem a pesquisa científica. Há cérebros naquele país, mas mal aproveitados, de modo que as atrocidades praticadas tornam-se simples “anedotas” aos quais o povo é forçado à amnésia histórica. Um amigo congolês com Mestrado em Direito e Alto funcionário da embaixada daquele país em França disse-me certo dia: “sabes, se nós (R.D. Congo) tivéssemos as riquezas que Angola tem, resolveríamos o problema da pobreza…”. O triste nesta história é que este camarada nem sabia que R.D. Congo tinha mais riquezas que Angola, e que lhes faltavam apenas organização e entendimento entre eles.
PDA – Você acredita que o fato de fazer fronteira com 10 países e de ter um dos solos de riqueza ainda imensurável leva empresas para a RDC com a exclusiva intenção de exploração, o que relembra o início do século XX?
PB – A RDC não é só o país mais rico em minerais na África central, mas também é geo-estrategicamente um potencial considerável. Quem estiver naquele país, terá acesso à mais de 10 países vizinhos diretos e toda África ao sul do Deserto do Saara. Com esta observação, pode se perceber porque as potências europeias/americanas nunca saíram daqueles país. No passado, os ocidentais traziam barcos, pagavam a tripulação, gasóleo e outras despesas para raziar escravos.
Mas com a destruição da anatomia social, os congoleses ficaram sem condições sociais, sem escola, sem dinheiro, etc. Agora, sabes como eles (Congoleses) fazem? Trabalham (no comércio, sobretudo) de forma a reunir um bom dinheiro, para depois imigrar no “Potó”, Europa, onde exercem uma escravatura voluntária. É uma nova exploração que faz com que a Europa já não precise vir, são os congoleses (e africanos em geral) que vão lhe chamar para voltar.
PDA – Muitos críticos atribuem a situação de tensão no país ao legado da colonização, mas a realidade é que há regiões do país onde o Estado não consegue chegar e as milícias comandam ditando suas “leis” e cometendo novas atrocidades como recrutamento de crianças-soldado, estupros em massa… Poderíamos dizer que a RDC ainda não se libertou de seus algozes?
PB – A colonização, pelo menos, criou condições primárias para desenvolvimento do R.D. Congo: criou universidade, criou Gecamines, criou “Palácio do Povo”, etc. A primeira república precipitou o país no conflito tribal e não construiu um prédio sequer! A segunda república – com um golpe dos Estados Unidos da América e seus parceiros europeus contra o comunismo – pilhou as riquezas deste país. A terceira república que era esperança cedeu a uma nova exasperação. A R.D. Congo está numa grande floresta. Ela precisa das instituições de qualidade para resolver as comunicações das populações.
Ora, o Estado central cortou as relações com os Estados costumeiros de modo que não promove as pesquisas sobre as populações. Agora, as milícias só podem ser bem resolvidas caso teoricamente conhecidas. Ora, não conheço nenhuma universidade – no Congo nem nos países vizinhos – que promove curso sobre “Estudos africanos” ou “Estudos congoleses”. Só existem nas universidades europeias, americanas, etc. Talvez justifique quanto falamos que a R.D.Congo e África em geral ainda não se libertaram de seus algozes.
PDA – Angola é uma nação culturalmente muito próxima da RDC, até porque, antes da Conferência de Berlim, muitas regiões que foram divididas eram parte de um mesmo território que compartilhava costumes, língua, história… Angolanos e congoleses celebram a independência com o mesmo empenho?
PB – Angola é um país politicamente diferente de R.D. Congo, embora cultural e socialmente ambos Estados precisassem de uma boa vizinhança. Entre 1960 até 1975, o governo de Kinshasa não teve boa vizinhança por causa da Guerra Fria. Durante a democratização (1990-1995) da África, o governo de Kinshasa serviu de desestabilização do partido no poder em Angola. Mas ainda assim, muitos angolanos festejam nas suas casas essa independência. E por razões simples: (i) os Angolanos fronteiriços (comerciantes por excelência) financiaram os independentistas congoleses; (ii) a retirada dos ex-colonizadores belgas, através do território angolano, encorajou os Angolanos na conquista da sua independência.
PDA – Em 2006, o país vivenciou a primeira eleição geral em 40 anos. Apesar da tensão em algumas regiões do país, existe uma defesa de consolidação da democracia. Como historiador, seria possível dizer que as relações entre política e democracia avançaram na última década quando comparadas aos anos 60?
PB – As eleições de 2006 falharam na sua realização e perspectivas, mas a sua realização foi um sinal da normalização constitucional. A democracia ainda é uma ocidentalização do Estado congolês, e nada se pode comentar ainda sobre a política [doméstica] neste país. A geração atual dos políticos congoleses é órfã das anteriores, logo desnorteada para assumir verdadeiramente o destino do país. A democracia, tal como se apresenta hoje, é um desencontro do bem-estar populacional com o enriquecimento ilícito dos hierarquicamente poderosos. Nos anos 60, o cenário era outro: Belgas e Congoleses elite/educados.
Foi uma relação de cooperação em busca de equilíbrio das diferenças. Hoje o cenário é outro: Congoleses de Esquerda x Congoleses de Direita. Estamos assistindo a uma relação de conflito. Comparando-as, eu acho que estas relações retrocederam. R.D. Congo é um mostro adormecido, e não é desta forma que irá acordar. Os Africanos precisam que este R.D. Congo acorde, e desempenhe suas funções geo-estratégicas que a geografia lhe deu! Com as instituições fortes em Angola, Congo Brazzaville, Tanzânia, Zâmbia, Chade, República Centro-Africana, Burundi, Uganda e R.D. Congo reencontradas, a África dará alegria aos seus filhos!
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