Natalia da Luz , Por dentro da África
Maputo, Moçambique – Ele é referência quando se trata de literatura africana. Exímio poeta, Antônio Emílio Leite Couto, mais conhecido como Mia Couto é um homem incansável, com absoluta consciência do seu papel na sociedade. Jornalista, biólogo e escritor que assume várias vertentes, é acima de tudo cidadão.
Aos 54 anos, o dramaturgo fã declarado de Guimarães Rosa e cidadão moçambicano de Beira (uma das cidades mais afetadas pela guerra civil, que se prolongou de 1976 a 1992), coleciona 25 livros e prêmios importantes como o Vergílio Ferreira (1999), União Latina de Literaturas Românticas (2007), Prêmio Camões (2013) e o título de um dos 12 melhores livros africanos do século XX por “Terra Sonâmbula”, eleito na Feira Internacional do Livro do Zimbábue.
(Entrevista realizada em Maputo e publicada pelo G1, em 2009)
O que é “E se o Obama fosse africano e outras internvenções”?
Mia Couto – É o segundo livro que eu faço relacionado à ideia de não perder alguma coisa que eu fui construindo ao longo do tempo. São coisas não-datadas, fora da literatura, ensaios, intervenções que eu faço. Como cidadão, sinto obrigação de estar presente, de dizer o que penso. Moçambique é um país muito recente. Mesmo que seja uma ilusão, há essa ideia de que podemos contar, de que podemos ser ouvidos e de que isso vale a pena.
Qual o texto mais importante ou emocionante?
Couto – Cada um tem um aspecto, um propósito diferente. O primeiro, o “Guardador de rios”, é uma história real e, para mim, simbólica. É uma história que vale a pena lembrar. É sobre um programa que foi feito no Gurué, na província da Zambézia (norte do país). Um homem foi ensinado a medir o nível do rio com as horas e os metros. Ele fazia isso todos os dias, registrando em um formulário. Depois veio a guerra, esse programa desapareceu, e o homem perdeu contato com o resto do mundo. Quando, 16 anos depois, foram visitar aquele lugar, encontraram o homem trabalhando. Ele já não tinha formulário, claro. Escrevia com um pedaço de carvão em uma grande parede. E essa história para mim é muito bonita. Sobre alguém que não desistiu da sua missão. É uma lição para mim. Como se fosse um contrato que ele tivesse com o próprio rio. É isso que eu quero fazer: converter o mundo em uma página e escrever nela como se fosse uma lição, nem que seja só para mim!
Como é o próximo livro?
Couto – É um romance que tem dois títulos diferentes. Em Angola e Portugal se chama “JesusAlém” e no Brasil, “Antes de nascer o mundo”, porque a editora preferiu esse título. É uma história sobre um pai que, aparentemente, enlouquece e leva a sua família para um lugar remoto. E anuncia à família que o mundo terminou, que são os últimos sobreviventes, que não há mais humanidade. Esses meninos crescem com essa ideia de que são os últimos habitantes do mundo. Depois essa mentira é desconstruída pela chegada de uma mulher e aí começa uma história de conflito com o mundo.
Você aborda, especialmente, temas sociais. Qual a importância em fazer uma ficção ou uma ficção associada aos problemas sociais?
Couto – Acho que não existe simplesmente ficção. Todo texto sempre tem essa relação de fronteira mal desenhada entre o que é real e o que é ficcional. O escritor brinca com isso, e ele próprio não sabe o que é. Fica confuso, mas, pelo menos, é verdadeiro nessa declaração de que não está dizendo algo inteiramente verdadeiro. Estou convidando as pessoas a brincarem nesse terreiro em que não se sabe o que é real, o que é utópico, o que é sonho. No fundo, complicamos um assunto que é muito simples. Eu acompanhei meus filhos, agora meus netos e vejo essa necessidade quase biológica de construir histórias. A necessidade de encantamento é uma coisa que me parece da nossa própria espécie. Por isso, a criança fica em êxtase quando ouve uma história. O que o escritor faz, no fundo, é eternizar essa relação que mexe com o nosso próprio lado criança.
Eternizar essa relação é como alimentar essa curiosidade, esse fascínio. E o que fascina você?
Couto – Fascina-me contrariar a ideia de que o mundo já está feito, de que o mundo serve só para nós nos servimos dele, que ele serve apenas para ser consumido.
Como o cidadão deve se fazer presente na literatura?
Couto – Isso tem que ultrapassar a literatura. Mesmo que eu não fosse escritor, sentiria a obrigação de fazer coisas, dizer coisas, de contribuir. Não sou dos que pensam que basta lamentar, que basta criticar tudo ao redor em um café da esquina. Eu acho que temos que estar presentes.
Como a literatura pode ajudar a reerguer a cultura, especialmente em uma nação pós-guerra que teve tantos bens não-materias dilacerados?
Couto – Não sou otimista em relação à importância da literatura no mundo. As pessoas sabem que os livros são pouco lidos, que são para um pequeno grupo. Portanto, é mais inteligente deixar que essa mensagem circule sem obstáculos do que criar ao redor dos escritores uma importância que, afinal, eles não teriam de outra maneira. Então, acho que existe a liberdade para publicar o que quisermos. Do ponto de vista literário, claro.
Moçambique e África são temas presentes em suas obras. Você acha que é preciso expandir a realidade africana para o mundo?
Couto – Os que pensam, na verdade, não pensam. Para os que pensam a África, a ideia já está formada. Acham que já sabem. Que seja por uma romantização de esquerda ou direita. A África que existe na cabeça da maioria das pessoas é folclorizada, idealizada. É uma África que não existe. E os próprios africanos assumiram essa imagem. Acredita-se que a África é assim não por questões históricas, mas por uma espécie de genética do continente.
Os grandes autores estão concentrados na Europa e nos Estados Unidos. Por que existem poucos escritores africanos reconhecidos?
Couto – Porque quem diz sobre o tamanho dos escritores africanos, não são os africanos. Quem classifica, quem categoriza, está fora da África. Os grandes prêmios, as grandes editoras estão fora da África. Aí precisam se subordinar a critérios que não são os africanos, se é que existe alguma coisa chamada critério africano. Também não sei. Os grandes centros da cultura africana são aqueles que podem avaliar sobre o que é africano e o que não é africano. Tenho amigos escritores africanos que, quando abrem jornais americanos e europeus, se assustam com as críticas de que o livro não é autenticamente africano. Eles questionam a autenticidade. O que é isso, afinal? Ninguém sabe! Eu acho que ainda continua sendo uma certa alienação de critérios.
O país vem crescendo bastante nos últimos anos. Como está Moçambique hoje?
Couto – Se você olhar para o padrão arquitetônico, Moçambique é uma cidade grande e moderna. Mas ainda é uma sociedade rala, pouco urbanizada. A urbanização está presente na vida de uma pequena minoria. A maioria está no espaço rural. Ela não vem para a cidade, a ideia do espaço público não existe. Não sei como está Moçambique e para onde vai. É muito difícil dizer, porque o país vivenciou várias transições: colonização, revolução, socialismo, capitalismo, guerra, paz… Estamos em permanente incerteza. Estão se passando várias coisas com diferentes lógicas.
No momento político, o país vive a presidência aberta. Isso não é populismo?
Couto – Sim. Eu acho que é uma coisa populista. No formato, está certo. O presidente tem que estar na multidão. É uma coisa que nasceu em oposição à maneira de exercer autoridade, praticada pelo presidente Joaquim Chissano (que governou de 1986 a 2005). Ele tinha uma posição centralizadora. A tendência agora é retificar isso. Percebeu-se que o país é muito mais diverso do que se pensava no início. Agora, estamos em uma democracia formalmente aberta. Seja de que maneira, esse processo tinha que ser feito.
O que é mais importante ser solucionado em um país com tantos problemas?
Couto – O que falta mesmo é o país ter um pensamento, uma ideologia própria. Eu acho que cada um deles é grave: a pobreza, taxa de analfabetismo. A colonização portuguesa deixou o país sem nada, abaixo do zero. Acredito que o problema principal é sentir que existe uma visão clara sobre futuro, fundada não em discurso político, mas em um discurso verdadeiro, mais profundo, na procura daquilo que pode ser um caminho próprio. Com Samora Machel (primeiro presidente de Moçambique após a independência, de 1975 a 1986) havia uma ideia de futuro, uma aposta. As pessoas tinham uma crença, uma causa que agora não têm.
Então o que falta para recuperar essa crença?
Couto – O que falta é uma coisa em que as pessoas, na verdade, não acreditam. As pessoas têm uma ligação muito forte, muito filial com o político. Os presidentes são pais. Elas chamam o presidente de pai, grande pai. Nesse aspecto, o país se sente órfão. Desde que morreu Samora, as pessoas não se vêem naquilo que são os seus chefes. O grande sentimento que fica é de orfandade.
(Entrevista realizada em Maputo e publicada pelo G1, em 2009)
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